Título: As regras de licitação do sistema Petrobras
Autor: Tostes , André Hermanny
Fonte: Valor Econômico, 30/11/2007, Legislação & Tributos, p. E2

Com alguma freqüência, questiona-se a constitucionalidade do Decreto nº 2.745, de 1998, que instituiu o regulamento simplificado de licitações e contratações da Petrobras, o que contribui para gerar insegurança em um meio negocial altamente sensível. Ora são decisões dos órgãos de controle, por vezes demandas judiciais de empresas que disputam contratos dos mais diversos objetos junto ao sistema Petrobras, inconformadas com licitações realizadas em um processo mais simples, célere e direto, se comparados aos procedimentos sujeitos à Lei de Licitações - a Lei nº 8.666, de 1993. O regulamento simplificado da Petrobras, todavia, é condição jurídica indispensável ao sucesso da atuação da companhia.

O trajeto da sua elaboração legal pretende contribuir para afastar conclusões no sentido da inconstitucionalidade. A Emenda Constitucional nº 9, de 9 de novembro de 1995, tornou flexível o monopólio da exploração do petróleo e de atividades ligadas a este produto estratégico, admitindo que a União contrate atividades da produção, exploração, refino, importação, exportação e transporte com empresas privadas via concessão. Assim, o artigo 177, parágrafo 1° da Constituição Federal passou a ter a seguinte redação: "Constituem monopólio da União: I - a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros hidrocarbonetos fluídos; II - a refinação do petróleo nacional ou estrangeiro; III - a importação e exportação dos produtos e derivados básicos resultantes das atividades previstas nos incisos anteriores; IV - o transporte marítimo do petróleo bruto e origem nacional ou de derivados básicos de petróleo produzido no país, bem assim o transporte, por meio de conduto de petróleo bruto, seus derivados e gás natural de qualquer origem." O parágrafo 1º assinala ainda que "a União poderá contratar com empresas estatais ou privadas a realização das atividades previstas nos incisos I a IV deste artigo, observadas as condições estabelecidas em lei."

Em seguida, a União Federal editou a Lei nº 9.478, de 1997, de modo a permitir que o sistema Petrobras pudesse atuar, agora sem exclusividade e, mais do que isso, em meio multinacional altamente competitivo, na área do monopólio da União sobre petróleo e gás natural. O artigo 67 da Lei nº 9.478, por sua vez, autorizou o Poder Executivo a editar o regulamento do procedimento licitatório simplificado da Petrobras, nos seguintes termos: "Os contratos celebrados pela Petrobras, para aquisição de bens e serviços, serão precedidos de procedimento licitatório simplificado, a ser definido em decreto do presidente da República." E, finalmente, autorizado por esta previsão legal, o Poder Executivo editou o decreto que aprovou o regulamento do procedimento licitatório simplificado, aplicável a todo o sistema Petrobras.

O trajeto legal apresentado fixa, com toda nitidez, o enquadramento jurídico das atividades ligadas ao petróleo no Brasil. É regramento legal especial, de atuação no domínio econômico da exploração de petróleo - bem de monopólio da União, sem exclusividade, pois aberto à iniciativa privada.

-------------------------------------------------------------------------------- A disputa das estatais com a iniciativa privada impunha dotá-las do mesmo instrumental à disposição das empresas --------------------------------------------------------------------------------

Os entendimentos que defendem a inconstitucionalidade do Decreto nº 2.745 partem da interpretação do parágrafo 1º do artigo 173 da Constituição Federal, na redação que lhe deu a Emenda Constitucional nº 19, de 4 de junho de 1998. De acordo com este posicionamento, é a nova redação do referido artigo que teria previsto a edição, diferenciada e simplificada, de procedimento para licitação realizada por empresas estatais atuantes no domínio econômico. Assim, segundo essa postura, a Lei nº 9.478, por ser anterior à Emenda Constitucional nº 19, não poderia autorizar, via decreto, a edição de um procedimento licitatório simplificado.

A referida interpretação, todavia, desconsidera que a matriz constitucional da Lei nº 9.478 é o artigo 177 da Constituição Federal, que trata especialmente do tema petróleo. O artigo 173 da Carta cogita da atuação geral das estatais no domínio econômico. Assim, esse artigo é norma especial em relação ao artigo 173, parágrafo 1º da mesma Carta, que é norma geral. Norma geral e norma especial, como se sabe, convivem em perfeita harmonia. Esta distinção permite afastar imediatamente, com toda convicção, qualquer dúvida quanto à constitucionalidade do regulamento do procedimento licitatório simplificado.

O regulamento simplificado não é, com certeza, regra geral para disciplina das atividades das estatais que atuam no domínio econômico, genericamente considerado. Não é também, por óbvio, disciplina para atuação de estatais na prestação de serviço público. O regulamento simplificado é o instrumento de que o sistema Petrobras carecia para concertar os dois aspectos cruciais da sua atuação - sua origem estatal e a atuação no domínio econômico de exploração de bem estratégico e essencial ao desenvolvimento do país, em regime de ampla competição com todas as multinacionais que atuam no setor.

O histórico da exploração do petróleo no Brasil demonstrou a necessidade de dar flexibilidade ao monopólio e da edição de regras que assegurassem, simultaneamente, continuidade da participação estatal e a atratividade para a iniciativa privada. Somente assim seria possível - como já se verifica atualmente - a superação de metas de produção no caminho da auto-suficiência. A continuidade da atuação estatal, por sua vez, exigia a preservação dos princípios que orientam o poder público: impessoalidade, moralidade, publicidade, igualdade e eficiência. E a disputa com a iniciativa privada impunha dotar as estatais do mesmo instrumental à disposição dela, iniciativa privada, existente em meio de competição franca e aberta - rapidez, grau de formalidade reduzido, amplo poder de negociação.

O Estado não pode ter privilégios que desigualem a disputa em seu favor, nem a iniciativa privada pode estar dotada de instrumentos mais eficazes do que os que se encontram à disposição do Estado, máxime quando se fala em domínio econômico. O regulamento do procedimento licitatório simplificado da Petrobras assegura adequadamente este equilíbrio, do ponto de vista jurídico.

André Hermanny Tostes é advogado do escritório Tostes e Associados Advogados e professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro

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