Título: Governo e oposição jogam para a platéia com nova CPI
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 12/02/2008, Opinião, p. A12

Governo e oposição chegaram a um acordo ontem para a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito mista para apurar eventuais irregularidades no uso dos cartões de crédito corporativos. É um sinal de que nada de relevante será apurado ou apurado até o fim. O governo concordou em abrir mão da CPI no Senado, na qual teria controle dos resultados, desde que se investigue as contas do tipo "B", pagas com cheques em conta corrente de servidores designados - elas movimentaram R$ 99,5 milhões em 2007-, e os elevados saques em dinheiro com cartões no período que vai de 1998 até agora. O objetivo é saber o que acontecia com essas despesas também no governo de Fernando Henrique Cardoso.

É óbvio que algo está muito errado quando um servidor credenciado chega a usar um cartão do governo para comprar óculos de grife contrabandeado do Paraguai em um camelô por R$ 40. Os óculos são uma gota no oceano de R$ 75,56 milhões de despesas totais com os cartões e esse dinheiro todo é miúdo perto do gasto total anual, superior a R$ 450 bilhões, excluído o pagamento de juros. O que está em jogo não é o valor da nutritiva tapioca de R$ 8, predileta de um ministro, mas, sim, o que anda acontecendo com o dinheiro público e como ele está sendo gasto. Há bons motivos para se acreditar que há abusos e aproveitamento pessoal, quando não coisa pior. As contas cujos rastros são visíveis não são as que mais interessam, apesar de reveladoras. Não há a menor idéia da finalidade de grandes saques em dinheiro vivo.

A julgar pelo passado, governo e oposição jogam para a platéia. Haverá uma enorme perda de tempo para que, no fim das contas - a saber, descobertas irregularidades praticadas por tucanos e ex-pefelistas -, haja um acordo e tudo o que foi investigado seja arquivado. O maior escândalo da administração petista, o do "mensalão", acabou em pizza e os parlamentares envolvidos foram absolvidos, com uma ou outra exceção. Se não se investigou a fundo denúncias que ameaçaram a própria sobrevivência do governo de Lula, não será agora, por tão pouca coisa, que apurações sérias e rigorosas serão feitas.

A ética deixou de ser um princípio do atual governo, assim como não freqüentou a preocupação de seus antecessores. Como não há formas independentes de investigação rápida, com punição tempestiva dos culpados, nem um arranjo institucional que permita ao Estado fazer isso - o que é um espelho da Justiça a que cidadãos comuns estão submetidos no país - , resta o espetáculo das CPIs. Elas podem até expor a corrupção e outras mazelas dos ocupantes de cargos públicos, mas, ao terminarem sem que ninguém seja punido, só acentuam a sensação de absoluta impunidade dos que detêm alguma forma de poder, material ou político. A julgar pelo objeto inicial, como consertos de mesas de sinuca, gastos em free shops, academias etc., já se pode antever um espetáculo deprimente.

O governo, por seu lado, não acredita que deva apurar qualquer coisa. O ministro da Justiça, Tarso Genro, crê que a ministra Matilde Ribeiro, da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial, foi vítima de um engano ao ser demitida pelo presidente Lula. Para Tarso, faltou "prática no uso administrativo do cartão". Antes de qualquer apuração, ele disse que não houve "abusos" na utilização dos cartões. ("O Globo", 10 de fevereiro). Além da inapetência para investigação, o governo quer reduzir o seu âmbito. Pelo menos R$ 3,6 milhões foram gastos em 2007 pelo gabinete de Lula e é importante saber como o dinheiro foi gasto. O governo quer oficialmente jogar na penumbra estes gastos, ao classificá-los de sigilosos, em nome da segurança do presidente.

Há hipocrisia das duas partes. Da oposição, quando diz que não há problemas de segurança em se saber quem fornece as iguarias do Planalto - quando é evidente que há. E do governo, que poderia tornar disponíveis as despesas realizadas detalhadamente, sem entrar nos pormenores que, de fato, possam pôr em risco a integridade física do presidente e de seu staff.

Em meio a tudo, salva-se a correção do ministro Jorge Hage, da Controladoria-Geral da União. Para ele há uma grande "zona cinzenta" nas despesas "eventuais" e zero de transparência nas contas tipo B. Com clareza, ele resume o "x" da questão. "É preciso uma distinção clara entre público e privado". É o que sempre faltou.