Título: Terceirizar Páscoa leva indústria de chocolate a situação sui generis
Autor: Madureira , Daniele
Fonte: Valor Econômico, 13/03/2008, Empresas, p. B6

Debaixo das "parreiras" de ovos de Páscoa, instaladas nos supermercados de todo o país, o consumidor tem uma visão limitada do produto. Consegue identificar o tamanho, a marca, mas raramente a fábrica onde é produzido - informação que costuma ficar escondida nas "orelhas" da embalagem, bem na altura do laço usado para enfeite. É por isso que pouca gente sabe que a Nestlé, líder nacional do mercado de chocolates, não produz nenhum dos seus ovos de Páscoa: todos eles saem de duas fábricas terceirizadas, ambas localizadas na zona leste da capital paulista, a Village/Cepam e a Top Cau.

Essas empresas familiares, fundadas em épocas diferentes e que atuam de forma independente, têm muito em comum. Juntas, elas respondem por cerca de um terço de todos os ovos de Páscoa consumidos no Brasil. A maior parte dessa produção leva a marca Nestlé. O restante estampa tanto a respectiva marca de cada fabricante - Village ou Top Cau -, quanto das demais empresas a quem elas prestam serviços: Lacta/Kraft, Garoto, Ferrero, Fruto da Amazônia, além de produtos feitos sob encomenda para grandes redes como Grupo Pão de Açúcar, Carrefour, Wal-Mart, Lojas Americanas, Makro e Assai.

Para as grandes marcas de chocolate, as fabricantes da zona leste fornecem só a mão-de-obra: os ovos são feitos a partir da matéria-prima enviada em caminhões pela empresa cliente, como Nestlé, Lacta, Garoto ou Ferrero. Mas na fabricação dos ovos para as varejistas, porém, Village/Cepam e Top Cau usam a mesma cobertura, fornecida por ninguém menos que a Nestlé. E aí tem início uma relação sui generis na indústria: a Nestlé é, simultaneamente, cliente, fornecedora e ainda concorrente da Village/Cepam e da Top Cau nas gôndolas, já que as três disputam o mesmo consumidor.

"É uma relação incestuosa", brinca o professor da Escola de Administração da Fundação Getúlio Vargas (EAESP-FGV), Jaci Corrêa Leite. "São interesses diferentes coexistindo em uma mesma relação". Especialista em terceirização, ele afirma não ter estudado nenhum caso semelhante nem na indústria de tecnologia, onde produzir sob encomenda é a regra básica para se manter competitivo.

Mesma opinião tem Carlos Trostli, ex-presidente da Quaker e da Refinações de Milho Brasil (RMB), hoje da Unilever. "Em alimentos, é relativamente comum que uma marca forneça à outra, e que as duas venham a competir na mesma categoria, mas não que a fornecedora da primeira operação se torne também a cliente no segundo momento", diz Trostli.

O início dessa intrincada relação começou na metade dos anos 90, quando a Village/Cepam e a Top Cau passaram a atender a Nestlé com a produção de Páscoa. De lá para cá, o vínculo vem se tornando cada vez mais complexo, por vários motivos: o crescente interesse do varejo em participar da festa com marcas próprias, o que aumenta o número de clientes das fabricantes; o desejo dessas últimas em depender menos dos terceiros e fazer crescer a receita das suas respectivas marcas, Village e Top Cau, a fim de obterem margens maiores; a busca incessante das demais marcas de chocolate por competitividade, o que as faz procurar empresas como a Village/Cepam e a Top Cau para a encomenda de linhas sazonais e até mesmo itens de consumo contínuo.

Isso pode gerar conflitos em diferentes níveis da cadeia. Um deles acaba de despontar. Cliente há três anos da Village/Cepam, a Ferrero já anunciou que a partir do ano que vem seus ovos serão produzidos dentro de casa, na sua fábrica em Poços de Caldas (MG). A marca italiana acaba de investir ? 1,5 milhão em uma nova máquina para embalar os ovos e mantê-los com o aroma por mais tempo. "Embora confie na Cepam, não quero que este segredo vá parar nas mãos da Nestlé", diz o gerente-geral da Ferrero do Brasil, Pietro Cornero. A Cepam abre espaço dentro da sua fábrica para os "inspetores de qualidade" de cada cliente. Ainda que tenha o cuidado de atender uma marca por vez dentro do seu cronograma de trabalho, o espaço não deixa de ser o mesmo.

Nem Village, nem Top Cau revelam quais são seus clientes, mas isso pode ser facilmente constatado a partir do rótulo dos produtos que, por determinação legal, traz o nome do fabricante, independentemente de ser ou não um terceiro. Seus contratos têm cláusula de confidencialidade. Procurada, a Nestlé não dá detalhes sobre o processo de terceirização, o que torna difícil saber quais são as bases do contrato com Village/Cepam e Top Cau - se a condição de cliente exige que ela seja também fornecedora da cobertura, por exemplo.

Mas uma coisa é certa: a Nestlé é a maior beneficiária. "Ela consegue ser a única fornecedora de matéria-prima para duas empresas que fabricam ovos de Páscoa sob encomenda aos maiores varejistas e atacadistas do país", afirma o professor da Fundação Dom Cabral (FDC) Aldemir Drummond, especialista em estratégia e organizações em rede. Isso significa ser a fornecedora indireta de um enorme volume de ovos de preços competitivos, todos feitos a partir da cobertura da Nestlé.

Essa estratégia pode ser acertada, no momento em que a multinacional vem perdendo terreno nas vendas de Páscoa. Segundo a Nielsen, entre 2005 e 2007, enquanto o mercado cresceu 7,3% em volume, atingindo 10,36 mil toneladas, a Nestlé patinou, mantendo 2,39 mil toneladas. Em um segmento em ascensão, não crescer significa perder: foi o que aconteceu com o market share de volume da Nestlé, que recuou de 24,7% para 23,1% no período. Em valor, a perda nos últimos três anos foi ainda maior: de 24,7%, a participação caiu para 24,6%. Ao ser a única fornecedora de cobertura para Village/Cepam e Top Cau, a Nestlé consegue se manter à margem dessas variações de mercado. Pelo menos, por enquanto. A Cargill, maior processadora de cacau da América Latina, começou no final de 2007 a produzir também a cobertura de chocolate.