Título: Governo discute engavetar Ferroanel e alterar regras do setor ferroviário
Autor: Rittner , Daniel
Fonte: Valor Econômico, 17/03/2008, Brasil, p. A2
Sem alarde, o governo deve mudar uma das principais obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) na área de ferrovias e avalia ainda mexer em regras básicas do setor. O assunto tem sido tratado nos bastidores e coloca em lados opostos a Casa Civil e o Ministério dos Transportes. No centro da discussão está o Ferroanel de São Paulo, empreendimento orçado em cerca de R$ 1 bilhão, que, por ora, deverá ser engavetado, embora seja uma das obras do PAC.
O tramo norte do Ferroanel - a construção do tramo sul ainda não está sendo cogitada - é um projeto de 66 quilômetros de extensão, com o objetivo de propiciar melhor convivência entre o transporte de carga e o de passageiros na região metropolitana de São Paulo, facilitando o acesso aos portos de Santos, em São Paulo, e Itaguaí, no Rio de Janeiro.
Segundo cálculos do governo, a obra teria capacidade de tirar das marginais Tietê e Pinheiros, na capital paulista, 300 mil caminhões por ano só com transporte de açúcar. O projeto fica na área de concessão da MRS Logística. Hoje, os trens de carga usam os trilhos da Companhia Paulista de Transportes Metropolitanos, a CPTM, em pequenas "janelas" abertas ao longo do dia e, sobretudo, de madrugada, com imensa perda de produtividade.
Encarregado de elaborar estudos de viabilidade e de projeção de aumento da carga transportada com o Ferroanel , o BNDES abriu a polêmica. Pelos números do banco, o projeto se viabilizaria com contrapartida da União em torno de R$ 270 milhões, valor que bancaria gastos com desapropriações, por exemplo. A MRS e a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) consideraram "exageradas" as projeções do BNDES sobre o aumento do fluxo de carga. Viam a necessidade de contrapartida pública de até R$ 450 milhões, o que desagradou ao governo, sobretudo à Casa Civil.
Ressurgiu da divergência um projeto alternativo, levantado nos anos 90 pela Rede Ferroviária Federal (RFFSA), para remediar o congestionamento de trens na zona urbana de São Paulo. É apoiado pela MRS, ANTT, governo paulista e parte do governo federal. Trata-se do que o setor ferroviário costuma chamar de "segregação de linhas". Na prática, é uma duplicação dos trilhos atuais, usados principalmente para transporte de passageiros, em duas fases. A primeira entre Suzano e Manoel Feio, e entre Ipiranga e Rio Grande da Serra; a segunda, entre Água Branca e Alumínio - todas linhas da CPTM na região metropolitana de São Paulo.
Em vez de até R$ 1 bilhão, esse "plano B" exige investimentos de cerca de R$ 400 milhões, dispensando ou contando com poucos recursos da União. Um dos principais gastos seria com a construção de um trecho subterrâneo, de três a seis quilômetros, sob a estação da Luz, no centro de São Paulo. Segundo fontes do setor, o governo tucano de Geraldo Alckmin se opunha a esse projeto, mas ele tem apoio do governo José Serra (PSDB).
De acordo com funcionários de Brasília que acompanham de perto as discussões sobre o assunto, o plano de duplicação dos trilhos e a passagem subterrânea pela Luz teriam praticamente o mesmo resultado do Ferroanel, deixando-o como um projeto para mais adiante, 15 ou 20 anos.
A questão é que, uma vez reapresentado o projeto de segregação das linhas da CPTM, começou a ser discutida também a idéia de uma mudança estrutural na regulação do setor ferroviário. A Casa Civil ressalta que não basta garantir maior capacidade de circulação dos trens atravessando São Paulo, mas que isso seja feito com tarifas módicas e com ganhos para as cadeias produtivas que usam ferrovias para transportar mercadorias.
Prevalece, em boa parte do governo e sobretudo no Palácio do Planalto, a visão de que as tarifas de frete ferroviário são altas. Para a Casa Civil, a melhor forma de atacar o problema é mudar a regulamentação do setor na raiz. E aí começaram as divergências com o Ministério dos Transportes e a ANTT, a reguladora do transporte ferroviário.
A Casa Civil se convenceu que o modelo atual não estimula a competição. Hoje, a praxe do setor é o uso do "tráfego mútuo" para que uma operadora entre na malha da outra. A ferrovia é um monopólio natural. Como tal, sua utilização só pode ser feita pela detentora da concessão.
No tráfego mútuo, a operadora A recolhe uma carga em sua malha. Se precisa entregá-la fora de sua área de concessão, ela transfere essa carga para a operadora B no momento em que atinge a "fronteira" da malha. Em vários casos, pode seguir adiante sem a transferência, mas isso depende de um acordo comercial entre as operadoras. No fim das contas, porém, preserva-se o direito de exclusividade no transporte e as duas concessionárias são mais bem remuneradas no processo.
A alternativa ao tráfego mútuo é o "direito de passagem", em que os trens de uma operadora podem entrar nos trilhos da outra, pagando apenas pela depreciação das vias por onde passam. Se aplicado no Brasil, o modelo permitiria livre acesso das concessionárias a Santos ou a regiões de forte atividade agrícola, como o Mato Grosso.
Pelos contratos de concessão assinados com a transferência da malha da antiga RFFSA para a iniciativa privada, a partir de 1996, o tráfego mútuo é a regra geral e o direito de passagem só pode ser praticado na "impossibilidade" de que uma concessionária possa atender à demanda da outra. Além disso, o modelo em vigência tem o amparo de um decreto presidencial firmado na década passada, às vésperas dos leilões de concessão.
Especialistas reconhecem que a mudança pode gerar um choque de competição no curto prazo, com queda das tarifas de frete, mas fazem uma ressalva. Com remuneração mais baixa, as concessionárias podem diminuir investimentos, porque as melhorias em seus trilhos servirá para outras operadoras.
Esse modelo - de acesso livre - seria uma réplica das regras que vigoram hoje no Reino Unido, mas com uma diferença importante. Na rede britânica, é o governo quem faz a conservação e manutenção das vias, bem como o controle de tráfego, mais ou menos à semelhança da Infraero. As concessionárias apenas operam os trens, assim como empresas aéreas usam aeroportos públicos.
A Casa Civil acha possível mexer na regulamentação do setor com publicação de novo decreto e a "repactuação" dos contratos, sem desrespeitá-los. Para o Ministério dos Transportes, isso é impossível: significa quebra de compromisso e as concessionárias obteriam vitórias na Justiça contestando as mudanças. Diante da absoluta falta de consenso, admitem as fontes, o mais provável é que tudo fique do jeito como está, sem choques.