Título: Críticas ao resgate do Bear Stearns
Autor: Coy , Peter
Fonte: Valor Econômico, 31/03/2008, Finanças, p. C6

O Federal Reserve (Fed) esticou seu mandato para cima, para baixo e para os lados a fim de impedir um dilúvio no mercado financeiro. Agora ele parece estar também espichando um pouco o idioma inglês. O que o Fed está chamando de "empréstimo" de US$ 29 bilhões para ajudar a financiar o JP Morgan Chase na compra do Bear Stearns, parece mais um investimento de US$ 29 bilhões em títulos controlados pelo Bear. O Fed insiste que tecnicamente não está comprando quaisquer ativos, mas na prática é exatamente isso que ele está fazendo. Tudo isso contribui para um grande e desconhecido passo na intervenção financeira do banco central nos bancos de investimento de Wall Street.

É claro que o Fed é a única parte do governo com velocidade, poder e flexibilidade para conter um surto de pânico no mercado. Ao interferir rapidamente em meados de março para impedir a quebra do Bear Stearns, ele pode ter impedido uma série de falências em cascata que poderia abalar gravemente o sistema financeiro e a economia. Muitos economistas e analistas estão felizes que o Fed tenha agido. Mesmo assim, agora que as coisas se acalmaram um pouco, o Fed provavelmente vai enfrentar algumas questões difíceis sobre a natureza precisa de suas ações, assim como a justificativa legal delas.

As críticas em retrospecto já tiveram início. Em 26 de março, Christopher Dodd, presidente Democrata do comitê bancário, imobiliário e de assuntos urbanos do senado americano, anunciou uma audição para 3 de abril para explorar o "acordo sem precedentes" entre o Fed, JP Morgan e Bear Stearns. Funcionários da cúpula do Fed e outras autoridades reguladoras, além do presidente executivo do Bear Stearns, Alan Schwartz, e o presidente executivo do JP Morgan, Jamie Dimon, provavelmente serão inquiridos sobre os detalhes do acordo.

Enquanto isso, o secretário do Tesouro Henry Paulson deu uma alfinetada gentil no Fed em 26 de março, em um pronunciamento feito na Câmara do Comércio dos EUA. Ele disse que apóia totalmente as medidas recentes do Fed, mas observou que "o processo de obtenção de recursos para instituições não bancárias precisa continuar sendo o mais transparente possível". Ele também exortou o Fed a continuar trabalhando com outras agências para obter as informações necessárias para "tomar decisões bem informadas sobre empréstimos".

Até agora, poucas pessoas se concentraram no que exatamente o Fed está conseguindo em troca do fornecimento de US$ 29 bilhões para o JP Morgan Chase. Isso é um pouco surpreendente porque não importa qual tenha sido o acordo, ele está longe de um empréstimo padrão. A distorção mais estranha é que embora o dinheiro esteja indo para o JP Morgan, a instituição não é a tomadora.

Portanto, o Fed não pode exigir pagamentos do JP Morgan se os ativos do Bear Stearns acabarem apresentando um valor menor que o prometido.

É estranho também que se sobrar dinheiro depois que o empréstimo for pago, o Fed terá que manter o valor residual para si. Isso é o que poderia se esperar se o Fed estivesse comprando os ativos, e não apenas os tratando como uma garantia em troca de um empréstimo. Vincent R. Reinhart, ex-diretor da Divisão de Assuntos Monetários do Fed e hoje professor residente do American Enterprise Institute, disse em uma entrevista em 26 de março: "O Fed de Nova York é o reclamante residual. Para mim, isso não parece um empréstimo. Parece direito de eqüidade".

Para entender o que está acontecendo, é só voltar ao fim de semana de 15 e 16 de março, quando o Fed encorajou o JP Morgan a comprar o Bear Stearns a preço de banana para impedir o Bear de afundar e arrastar junto outros bancos. Mesmo a US$ 2 por ação, o JP Morgan não estava querendo fazer o negócio porque muitos ativos do Bear, apesar de terem classificação de grau de investimento, valiam quase zero em meio ao nervosismo que se abatia sobre o mercado.

-------------------------------------------------------------------------------- Características do acordo sugerem que o Fed está fazendo um investimento e não um empréstimo --------------------------------------------------------------------------------

Então, o Fed teve um arroubo de criatividade. Ele elaborou um acordo misterioso que daria ao JP Morgan o valor pleno de alguns dos ativos do Bear, se o JP Morgan comprasse o Bear.

Eis como a coisa funciona: Uma sociedade de responsabilidade limitada com sede em Delaware será estabelecida para receber, na conclusão da fusão, US$ 30 bilhões em posições variadas do Bear, como títulos lastreados em hipotecas. O Fed vai emprestar US$ 29 bilhões para essa companhia, que vai repassar todo o dinheiro para o JP Morgan, o novo controlador do Bear. O próprio JP Morgan vai emprestar US$ 1 bilhão para a companhia de Delaware. A companhia, administrada pela BlackRock Financial Management, vai pagar os empréstimos liquidando gradualmente os ativos.

Como proteção para o Fed, eles serão totalmente pagos antes do JP Morgan receber qualquer coisa de volta de seu empréstimo. O outro incentivo para o Fed é que, se sobrar dinheiro mesmo depois que o JP Morgan for pago, o Fed fica com tudo.

Do ponto de vista econômico, esse acordo complexo é praticamente idêntico à uma aquisição do portfólio do Bear Stearns pelo Fed - com uma pequena parte financiada pelo empréstimo subordinado de US$ 1 bilhão do JP Morgan. Mas o Federal Reserve Act (a lei que criou o banco central americano) não parece ter sido implementado para proporcionar ao Fed investimentos em patrimônio desse tipo. Isso não é um problema para o Fed porque ele afirma que os US$ 29 bilhões são de fato um empréstimo - ou, para usar a linguagem antiquada da legislação que criou o Fed, um "desconto" de uma "nota".

Uma explicação: O Federal Reserve Act permite ao Fed adiantar dinheiro para pessoas e companhias que não consigam crédito em outros lugares. Na década de 1930, um grande fazendeiro que desse ao Fed uma nota promissória de US$ 1 milhão para ser paga na época da colheita to trigo, podia receber imediatamente US$ 900 mil. (Isso é um desconto no valor de face da nota para compensar o Fed.) O Fed agora afirma que a companhia de Delaware é como esse fazendeiro da época da Grande Depressão, recebendo dinheiro adiantado (US$ 29 bilhões) por uma promessa de pagar algo no futuro.

É claro que a companhia de Delaware está prometendo pagar não só o principal e os juros, mas também qualquer dinheiro que sobrar. É esse juro residual que dá ao acordo sua natureza de direito de eqüidade. Mas o Fed afirma que ele representa apenas mais um tipo de promessa de pagamento totalmente previsto em sua carta de autorização.

Se esse caso prova alguma coisa, é que o Fed está pronto para pressionar os limites de sua carta de autorização para manter o sistema financeiro saudável. Adquirir efetivamente os ativos do Bear a preço de banana e depois liquidá-los é algo parecido com o que o Resolution Trust Corp. (RTC) fez quando encerrou suas operações de crédito imobiliário e leiloou seus portfólios de empréstimos na década de 1990. A diferença é que o Congresso estabeleceu o RTC mas não teve nada a ver com as iniciativas do Fed. As ações emergenciais do Fed são justificadas? Provavelmente sim. Elas passarão a ser investigadas ao extremo? Pode apostar nisso.