Título: As frequências do colonizado
Autor: Feuerwerker, Alon
Fonte: Correio Braziliense, 13/02/2011, Política, p. 4

Numa América do Sul (ou Latina) completamente livre de armas de destruição em massa nossa liderança é natural e incontestável

A timidez foi a marca da diplomacia e do governo brasileiros na crise que tirou Hosni Mubarak da Presidência do Egito. Algumas notas protocolares, com colocações genéricas. E só. Escrevi aqui dias atrás que a ultracautela da chancelaria e do Palácio do Planalto ajudava a evidenciar a dificuldade de colocar em operação uma política externa voltada para a defesa dos direitos humanos, objetivo anunciado pela presidente da República.

Por esse critério, o dos direitos humanos, não haveria dúvida do que fazer, o lado a apoiar na mobilização na Praça Tahrir e adjacências.

Mas o Brasil de Dilma Rousseff preferiu fixar-se noutro princípio, o da não ingerência.

É conveniente. Permite esperar pela definição de quem ganhou e quem perdeu e, melhor ainda, não obriga moralmente a apoiar possíveis levantes populares contra regimes amigos.

Gosto desta nova linha de o Brasil se meter o menos possível na vida dos outros. O ministro Antônio Patriota vem operando um saudável cavalo de pau, ou pelo menos um freio de arrumação.

Vínhamos de pelo menos duas trapalhadas, em Honduras e no Irã. Com consequências negativas para nosso principal ativo na relação com outros países das redondezas: a natural vocação para liderar regionalmente.

Em Honduras ficamos a reboque da Venezuela, sem espaço para uma política própria. Acabamos assistindo ao crescimento da influência americana, desde que a solução ficou a cargo dos Estados Unidos.

Restou-nos ali o papel de derrotados e ofendidos, e vingamo-nos quando o então presidente brasileiro se recusou a pegar o mesmo ônibus do desafeto hondurenho num desses encontros de líderes.

Mas encrenca mesmo foi o ensaio de aliança estratégica com o Irã. Era previsível ¿ e foi previsto ¿ que nossos vizinhos ficariam com a pulga atrás da orelha quanto às nossas próprias aspirações nucleares.

Em vez de a ambição de uma força militar incontrastável consolidar nossa liderança, levaria os amigos continentais a buscar na superpotência proteção contra nós. Agora, o site de jornalismo e política internacional operamundi.com.br traz mensagens diplomáticas americanas, vazadas pelo WikiLeaks, mostrando que a chancelaria argentina procurou os Estados Unidos para manifestar preocupação com os planos nucleares do Brasil.

O esforço brasileiro para construir um escudo diplomático em torno do programa nuclear iraniano levou o vizinho a desconfiar de que estaríamos usando Teerã como boi de piranha, para nós próprios eventualmente denunciarmos o Tratado de Não Proliferação.

Contribuíram também as sucessivas declarações do antecessor de Dilma, de que os países dotados da bomba não têm moral para impedir ninguém de possuí-la. Como se a proliferação nuclear generalizada e descontrolada fosse o melhor caminho para o desarmamento nuclear global. Só podia mesmo dar confusão.

Neste começo de governo, Dilma cuidou de ir à Argentina, coisa que presidentes brasileiros costumam fazer na largada. A novidade foi o anúncio de uma estreita cooperação nuclear. É autoexplicativo.

Um detalhe dos documentos vazados é o desejo argentino de firmarmos conjuntamente o Protocolo Adicional do TNP, que permite inspeções mais rígidas e sem constrangimentos por parte da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA). É também uma reivindicação dos Estados Unidos, o que desperta entre nós certas resistências. A mente do colonizado opera em duas frequências: ou 1) tudo que é bom para eles é também bom para nós ou 2) se algo é bom para eles é obrigatoriamente ruim para nós.

O colonizado é incapaz de enxergar o interesse nacional de maneira autônoma. Agora vê-se (confirma-se) que não são só os americanos. Nosso principal parceiro continental também desconfia de nós. Afinal, se não planejamos fazer a bomba por que o medo da transparência?

Aqui por perto ninguém compete conosco na combinação de território, população e economia. Numa América do Sul (ou Latina) completamente livre de armas de destruição em massa nossa liderança é natural e incontestável. Cuidar disso com obstinação é, em primeiro lugar, do nosso próprio interesse.

Se havia alguma dúvida, o WikiLeaks cuidou de dirimir.