Título: As vítimas civis do espólio da guerra
Autor: Álvares, Débora; Santana, Ana Elisa
Fonte: Correio Braziliense, 15/02/2011, Brasil, p. 10

Delegado responsável por operação que prendeu agentes corruptos confirma conhecimento da participação deles na ocupação do Alemão, diz que houve saques em casas de traficantes e já admite que investigação pode apontar abuso desses policiais contra moradores

Os desdobramentos da Operação Guilhotina, em que 39 pessoas ¿ entre policiais, ex-agentes e informantes ¿ foram presas na semana passada acusadas de vender armas, proteção e informação a traficantes, somados às declarações do Secretário de Segurança Pública do Rio, José Mariano Beltrame, ao Correio, na sexta-feira, em que ele confirma a presença de policiais corruptos na ocupação do Complexo do Alemão, em novembro, deixaram o delegado federal Allan Dias em uma saia justa. Segundo Dias, responsável pela operação de faxina na corporação do Rio, homens que estiveram na pacificação do complexo de favelas eram apontados como corruptos pelas investigações da Polícia Federal que desencadearam a Operação Guilhotina.

O delegado da PF explicou que os suspeitos não foram substituídos à época porque o envolvimento não havia sido confirmado ¿ ¿somente no decorrer da operação eles foram descobertos¿, disse ontem ¿, mas admitiu que os casos de abusos contra moradores, denunciados pelo Correio logo após a entrada de policiais nas favelas do Rio, podem ser confirmados como sendo obra desses policiais no decorrer das apurações. ¿As investigações podem apontar algo. Só vamos saber mais à frente¿, disse Dias, para relatar que os inquéritos, por enquanto, apontam ¿espólio de guerra¿, em que os produtos desviados das casas de traficantes eram revendidos a bandidos, realimentando o crime.

A declaração de Allan Dias bate com o que havia dito Beltrame na sexta-feira: ¿Primeiro fizemos o grande trabalho que estava planejado para lá, já com a garantia de que essas pessoas aqui na frente seriam presas¿, dando a entender que a Secretaria de Segurança Pública do estado sabia da condição de parte dos policiais que participaram da ocupação da favela.

Procurada pelo jornal, a assessoria de imprensa do governo do estado afirmou que todas as declarações a respeito da corrupção entre policiais ficam a cargo da Secretaria de Segurança Pública do Rio (SSP-RJ). Giuseppe Vitagliano, corregedor-geral da Corregedoria-Geral Unificada (CGU) do Rio, órgão subordinado à SSP-RJ que colaborou com as investigações, também alega desconhecer a ligação entre a operação e as denúncias da comunidade. ¿Não posso afirmar que os policiais presos abusaram de moradores, mas que praticaram desvio de conduta¿, limitou-se a dizer.

O que o delegado da PF confirma, no entanto, é que a invasão no Alemão serviu, sim, para reunir mais provas contra os policiais sujos. Segundo Dias, os acusados foram monitorados por meio de filmagens e fotografias, em que foi possível provar os desvios de armas, munições e até pertences retirados das casas ¿ mas de acordo com o delegado, apenas casas de traficantes. ¿Atuamos com ação controlada, uma técnica de investigação que permite a autoridades policiais obter provas na melhor condição possível.¿ Ele explica ainda que a medida foi necessária para justificar pedidos de prisões preventivas, além de punir os envolvidos com a expulsão de seus cargos.

Não bastassem as filmagens e fotografias, escutas telefônicas gravadas entre os suspeitos também denunciam saques praticados por agentes em casas de traficantes. Em uma das gravações feitas pela Polícia Federal, dois policiais descrevem a corrida no morro: ¿Disseram que aí virou Serra Pelada¿ Tem buraco para tudo quanto é lado. Para achar algumas coisas¿, disse um dos monitorados pelas investigações.

Embora o delegado federal não confirme com 100% de convicção a ligação entre a corrupção policial e a situação vivida nos morros fluminenses, a Rede de Comunidades contra a Violência, organização não governamental que presta apoio a moradores, recebe semanalmente cerca de 35 denúncias da comunidade contra agentes que deveriam cuidar da segurança. O problema é que nem todos os casos são documentados nas delegacias. Dois meses após a ocupação, a comunidade esbarra na burocracia em registrar ocorrências. ¿Não se consegue fazer o registro de ameaça, por exemplo, porque os agentes não entendem o que acontece como ameaça. Então denunciamos à CGU e o delegado diz que a ocorrência não vale¿, critica Patrícia Oliveira, integrante da entidade.

Segundo o corregedor-geral da CGU, toda denúncia é verificada. No entanto, um empecilho citado é a falta de testemunhas. ¿Apuramos todas as informações que chegam, mas não conseguimos provar os fatos. Nem os próprios moradores sabem apontar os culpados¿, alega Vitagliano.