Título: Uma anistia bastante elástica e muito generosa
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 25/04/2008, Opinião, p. A12

A forma como ocorreu o processo de redemocratização brasileiro facilitou a confusão. A anistia dada pelo presidente-general João Figueiredo, em agosto de 1979, foi destinada não apenas aos perseguidos pelo regime ditatorial, mas àqueles que torturaram e mataram nos porões do regime militar. A lei tornou os responsáveis por mortes e torturas inimputáveis como os menores de idade e os doentes mentais - inviabilizou os processos contra os algozes, e, assim, o acerto de contas dos perseguidos ou das famílias dos mortos nesse período por motivação política.

A versão brasileira "cordial" da transição de uma ditadura para uma democracia, no entanto, além de não permitir sinceros acertos de conta, vem gradativamente abrindo a porta para um individualista e oportunista entendimento do que é um ressarcimento por abusos da ditadura. Corre-se o risco de, em vez de proceder a uma revisão da história - fundamental para que o país não viva outro período negro como o de 1964-1985 -, tornar o passado e os riscos corridos por milhares de pessoas na resistência contra a ditadura em vantagens para alguns.

Entende-se a posição da Comissão de Anistia que, desde o governo FHC, vem julgando os pedidos de reparação feitos por ex-perseguidos, ex-presos ou familiares de mortos pela ditadura, com a generosidade que deve ter o único instrumento de reparação da violência política praticada pelo Estado naquele período. É intrigante, contudo, a forma como se apoderam desse instrumento corporações de trabalhadores e funcionários públicos, para tentar impor como direito ou justiça questões que fogem completamente ao objetivo da comissão e sequer têm correspondência com o período histórico em questão.

Para não abrir grandes polêmicas, não se vai aqui entrar no mérito de se é justo indenizar pessoas que não sofreram danos permanentes, físicos ou mentais, em razão de perseguição ou torturas. Mas se essa questão já origina dúvidas nos que assistem a emotivas concessões de indenizações e pensões, fica mais difícil ainda defender a justeza de reivindicações de funcionários públicos exonerados por planos econômicos já no período da redemocratização, exigências de reintegração de ex-funcionários de empresas privadas demitidos no decurso de greves e pressões para obrigar empresas privatizadas a reintegrarem funcionários demitidos quando elas já não mais pertenciam ao Estado. Sem instituto legal para conseguir essas "vitórias" na Comissão de Anistia, os sindicatos estão se mobilizando na Câmara para aprovar projeto de lei de autoria da deputada Maria do Rosário (PT-RS), abrindo as comportas do Tesouro para quem quer que tenha sido demitido em movimentos grevistas do funcionalismo e para qualquer um que tenha encontrado a porta da rua na reforma do Estado que se processa praticamente desde o governo de Fernando Collor de Mello (1990-1991).

A reintegração compulsória em empresas públicas ou privadas, por força de um lobby sindical poderoso no Congresso, a pretexto de uma anistia, é altamente duvidosa. Os exonerados ou demitidos irregularmente do serviço público ou das estatais têm a Justiça como recurso, mas lei de 1996, que beneficiou os demitidos pelo Plano Collor, mostrou que é mais fácil e mais rápido uma "anistia" obtida pela movimentação corporativa das associações de funcionários junto a ex-funcionários públicos que se tornaram parlamentares. "Anistia", segundo o dicionário, é "perdão, esquecimento". No caso desses demitidos, o perdão é para quem, para o Estado ou para os ex-funcionários?

Se a "anistia" for para sindicalistas demitidos em movimentos grevistas, ainda assim é difícil defendê-la. A vida sindical, no serviço público ou na iniciativa privada, embute riscos. Eles fazem parte do jogo político. Não se concebe uma militância com risco zero. Isso não existe.

Como não são minimamente razoáveis as reivindicações dos lobistas corporativos, elas excitam outras reivindicações sem qualquer sentido. Já há quem fale em indenizar os negros pelo período da escravidão. E até os "mateiros" do Araguaia, que cumpriram o triste papel de ajudar o Exército a exterminar guerrilheiros do PCdoB, querem o seu. E aí fica a questão: um país inteiro que viveu os horrores da ditadura é credor de poucos que reivindicam vantagens - e alguns deles sequer gritou uma palavra de ordem contra o regime militar.