Título: Algo além do centenário
Autor: Yokota , Paulo
Fonte: Valor Econômico, 27/05/2008, Opinião, p. A14

Aqueles que acompanham atentamente os fatos que marcam o intercâmbio bilateral entre Brasil e Japão sentem no ar que está ocorrendo algo mais que os intensos eventos que marcam as comemorações do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil, que por si só já são expressivos. Tudo indica haver uma reconsideração geopolítica importante em curso, principalmente por parte dos japoneses, que exige das autoridades brasileiras e de todos em geral uma acurada compreensão deste processo.

Com os muitos eventos culturais e sociais que marcam o Centenário, no Brasil e no Japão, corre-se o risco de não perceber esta tendência do intercâmbio com uma perspectiva de prazo mais longo e sentido político e econômico mais profundo.

Não passa desapercebido o envio de dois importantes ministros japoneses - Akira Amari, do Ministério da Economia, Comércio e Indústria (METI), e Masatoshi Wakabayashi, do Ministério da Agricultura, Floresta e Pesca (MAFF) - ao Brasil no último mês de abril. A idéia era consolidar trabalhos conjuntos de universidades japonesas e brasileiras, estendendo-se pelos institutos de pesquisa, para períodos de duração superior aos atuais governos. Há tempos que não ocorria algo desta potencialidade, e isso não deve ser interpretado como obra do acaso.

Há um pano de fundo em que isso está ocorrendo, pois as visitas foram precedidas por um encontro informal de um respeitado analista geopolítico japonês, que vem colaborando com as mais altas autoridades do Japão há algumas administrações. Do lado japonês, sente-se uma intenção determinada de elevar o intercâmbio com o Brasil, dentro dos seus interesses geopolíticos.

A esperança é a de que haja a mesma percepção do lado brasileiro. O presidente da República foi representado pela ministra Chefe da Casa Civil Dilma Rousseff na cerimônia de 24 de abril, em Tóquio, quando na presença de Suas Majestades Imperiais do Japão (Akihito e Michiko, imperador e imperatriz, além do príncipe herdeiro, Naruhito), foram marcadas as comemorações do Centenário da Imigração. Mais de 120 personalidades brasileiras foram convidadas para o evento, inclusive membros da missão empresarial da Fiesp e autoridades do governo de São Paulo e do Paraná, Estados onde se concentram imigrantes japoneses e seus descendentes.

Os japoneses consideram, com razão, de grande importância o cargo de chefe da Casa Civil, tanto no Brasil como no Japão. É o elo de ligação do presidente ou primeiro-ministro com as demais autoridades. Uma representação ministerial deste quilate sensibiliza o mundo político-empresarial japonês, servindo como uma sinalização da importância dada a este intercâmbio.

-------------------------------------------------------------------------------- O Brasil admite que seu crescente intercâmbio com países asiáticos decorre de sua sólida posição com o Japão --------------------------------------------------------------------------------

O príncipe herdeiro Naruhito deverá abrilhantar no Brasil as comemorações do Centenário, que está ganhando uma importância inusitada na mídia. Aumenta-se o nível de conhecimento recíproco dos dois povos. E o presidente Lula certamente atenderá o convite para participar do Summit de Hokkaido previsto para julho próximo, podendo aproveitar a oportunidade para sancionar também esta elevação do atual patamar dos contatos bilaterais.

Um intercâmbio bilateral tão intenso demonstra que o interesse recíproco, no atual contexto mundial, marca uma nova postura geopolítica que se diferencia de outras das últimas décadas, como preconizado no relatório do Conselho Brasil-Japão para o Século XXI. Os japoneses constatam que a agressiva ofensiva chinesa na África procura assegurar o estratégico suprimento de petróleo e minérios e exige ações concretas do Japão. O Brasil admite que o seu atual e crescente intercâmbio com diversos países asiáticos decorre da sua consolidada posição com o Japão. Sem as bases estabelecidas com os nipônicos, não havia como chegar na Coréia, Taiwan ou até na China, hoje um dos pólos dinâmicos mundiais.

E pretende-se estender os intercâmbios brasileiros com os outros países asiáticos, que contam com gigantescas populações, inclusive com a Índia, uma outra grande potência emergente.

Para contrabalançar a forte pretensão chinesa na África, com a qual o Japão não consegue rivalizar, parece natural que procurem priorizar os entendimentos com o Brasil, tradicional parceiro na América Latina. As relações bilaterais, que já foram mais expressivas no passado, andavam patinando nas últimas décadas, em que pese as mudanças qualitativas observadas. O Brasil, em vias de transformar-se em importante fornecedor internacional de energias em suas variadas formas, ganha maior importância estratégica, que supera até mesmo a de fornecedor de matérias primas. Torna-se urgente consolidar esta parceria, retomando ao patamar que já se tinha conquistado no passado e elevando o seu nível, avançando pelos produtos brasileiros industrializados de alta tecnologia.

O Japão vem se empenhando no suporte à Petrobras, tanto nas plataformas marítimas, como nas reformulações de suas usinas, ou no estabelecimento da rede de gasodutos. Avança agora nas atividades de ampliação da produção e comercialização do etanol e de outros biocombustíveis. Ao mesmo tempo aquela estatal adquire o controle da usina de Okinawa, transformando-a em processadora de petróleo pesado, evitando os problemas dos poluentes na mistura com o etanol. O objetivo não se restringe ao suprimento do mercado japonês, mas estende-se ao de outros mercados asiáticos, onde os problemas de poluição são mais graves.

Na esteira destes empreendimentos, muitos outros podem se seguir, caracterizando uma nova postura geopolítica. Que estas oportunidades sejam captadas pelos setores privados de ambos os países, para um novo round de parcerias, indispensável diante da redução relativa da presença norte-americana na economia mundial.

Na medida em que tudo isto seja tratado de forma sistêmica, com o pleno conhecimento dos agentes em ação, a eficácia desta nova parceria geopolítica poderá ser mais elevada, aumentando suas vantagens para o Brasil e suas empresas. Com as dificuldades persistentes na rodada de Doha, parece que está chegando a hora para se cogitar de um EPA - Acordo de Parceria Econômica - ou um FTA - Acordo de Livre Comércio - do Brasil com o Japão, ainda que continuem as dificuldades para inclusão dos produtos agrícolas.