Título: Inflação faz classes C e D buscar o mais barato
Autor: Madureira , Daniele
Fonte: Valor Econômico, 11/06/2008, Empresas, p. B5

A celeuma que dominou na semana passada, em Roma, o encontro de cúpula da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) - a alta das commodities agrícolas, que aumentou o preço dos alimentos, está ou não relacionada à produção de biocombustíveis - passou ao largo das preocupações da encarregada de limpeza Maria Lúcia de Oliveira, 30 anos. Mãe de dois meninos, um de 11 anos e um bebê de um ano, ela e o marido estão interessados mesmo em não fechar o mês no vermelho.

A inflação acumulada dos alimentos subiu 15,21% nos últimos doze meses, encerrados em maio, segundo a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe).

Lúcia, então, mudou a cara do seu carrinho de compras. "Passei a levar menos leite para casa, troquei de marca no feijão e no arroz, preferindo as mais baratas, e também comecei a comprar uma marca genérica de 'petit suisse' para o meu filho caçula, que nem percebeu a diferença", brinca Lúcia. Ela tem que dar conta, junto com o marido, de um aluguel de R$ 250 e uma prestação de R$ 200 do carro usado que comprou.

Assim como ela, os consumidores das classes mais baixas prometem dar trabalho ao varejo e à indústria em tempos de inflação em alta. Com parte da renda já comprometida em prestações fixas, as reações mais comuns desse público ao aumento de preços tem sido a pesquisa de produtos, buscando sempre promoções e lojas mais baratas, inclusive "atacarejos" (atacados onde o consumidor comum também compra) e, principalmente, a mudança para as marcas mais em conta, que ofereçam quase a mesma coisa que as líderes.

No varejo, o trabalho para não perder vendas já começou. "Procuramos fornecedores de marcas de combate, mais em conta, oferecendo novas opções para o consumidor", afirma Nelson Júnior, gerente de marketing da rede Bahamas, dona de 21 lojas na Zona da Mata mineira, que faturou R$ 502,4 milhões em 2007. Segundo Júnior, a estratégia já vem dando certo. "Em maio, aumentamos nossa receita em 34%, não só por conta da alta dos preços, mas porque o volume vendido também cresceu", garante.

Como exemplo, ele cita os biscoitos da Marilan, fabricante paulista que está fazendo frente à Aymoré, marca mineira comprada pela argentina Arcor, que sempre foi a preferida na região. "A Marilan está com uma estratégia muito agressiva, oferecendo produtos de boa qualidade e embalagem atraente, a preços competitivos", diz Júnior.

Especializada em gêneros alimentícios, a Bahamas repõe o seu estoque a cada 21 dias e afirma não ter mais "fidelidade" a nenhum fornecedor. "Compramos de quem oferece a melhor oportunidade de preço", diz o executivo. Isso significa colocar a marca premium de arroz Prato Fino, da Pirahy Alimentos, por exemplo, cujo pacote de cinco quilos é vendido a R$ 15,80, ao lado da concorrente Dono da Casa, oferecida a R$ 7,99. "Tentamos segurar o repasse de preços ao máximo, acirrando a queda-de-braço com os fornecedores, mas este ano tivemos que remarcar os produtos e, por isso, aumentamos o leque de opções", afirma Júnior.

Em tempos de preço salgado, o consumidor já deu provas de que não tem lealdade a marcas, principalmente quando se trata de itens da cesta básica. "As commodities, por exemplo, são os primeiros artigos que o público troca numa situação de alta de inflação", diz Cesar Fukushima, economista-chefe da consultoria Gouvêa de Souza & MD. "Se o arroz ficou mais caro, a pessoa muda para outra marca mais barato na hora, sem hesitar", diz. O mesmo acontece com o feijão, que subiu 113% (nos últimos 12 meses, segundo a Fipe), a farinha de mandioca (4%), o leite (15%), o fubá (6%), o purê de tomate (5%) e a massa de macarrão (27%).

Para manter o celular, prestação de carro usado e casa nova, consumidor troca de marca de arroz, feijão, xampu e leite

Essa deslealdade também atinge o lugar onde o consumidor faz suas compras. "Para compensar a carestia, ele pesquisa onde está mais barato e vai lá", diz o vice-presidente da Associação Paulista de Supermercados (Apas), Martinho Paiva Moreira. Isso, segundo ele, está acontecendo com os hipermercados, em favor das lojas de bairro (as "hard discount") e os chamados "atacarejos", os atacados onde consumidores comuns também podem comprar. "Com a ascensão econômica das classes C, D, e E, boa parte desse pessoal percebeu que a vida não é só comprar alimento. Eles passaram a adquirir novos itens e artigos melhores", afirma Moreira. Segundo ele, quem experimenta um desodorante melhor, um papel higiênico mais suave ou começa uma reforma em casa, não quer parar de com nada disso. "O consumidor, então, abre mão do conforto de um hipermercado para adquirir as mesmas mercadorias que comprava, mas a preço mais baixo, no atacarejo, por exemplo."

Não é para menos. "Em uma compra de mês, por exemplo, o cliente chega a pagar em média 20% menos em lojas de atacado que no varejo", diz Carlos Eduardo Severini, diretor comercial do Tenda Atacado.

Nas redes de mercados de bairro, como a Econ, que tem 48 lojas em São Paulo, os preços também subiram, mas ainda estão mais competitivos que os cobrados em lojas maiores. "Por isso tivemos um aumento de 20% no movimento nos primeiros cinco meses do ano", diz Emílio Bueno, presidente da rede Econ. Esse movimento maior, segundo ele, aconteceu graças à migração de consumidores que antes faziam compras em lojas grandes, de redes nacionais.

Mesmo quem não atende prioritariamente a classe C já sentiu a migração para os itens mais baratos. "Há uma busca maior por marcas próprias e de combate", diz Roberto Moreno, diretor financeiro da rede Sonda e vice-presidente da Apas. Assim como o Bahamas, o Sonda, dono de 15 lojas em São Paulo e de um faturamento de R$ 832,3 milhões no ano passado, afirma estar em constante negociação com os fornecedores, para que o repasse de preços para o consumidor não seja feito na íntegra. "O outro lado está mais sensível à necessidade de negociar para não ficar sem vender e temos conseguido bons resultados", afirma Moreno.

Mesmo porque, as escolhas do consumidor são soberanas. No Sonda, por exemplo, aumentou a procura por marcas como Dolly, em detrimento da líder em refrigerantes Coca-Cola. Por outro lado, a demanda em categorias como guloseimas, salgadinhos e biscoitos está em desaceleração. "São categorias consideradas supérfluas pelo consumidor, que podem ser deixadas de lado sem muito esforço", afirma Moreno.

Nilda dos Santos Silveira, auxiliar de limpeza e colega de Lúcia, sabe bem disso. Ela mora sozinha em um cômodo que comprou ano passado, no Jaguaré, zona oeste de São Paulo, o que lhe consome uma prestação de R$ 330 por mês, o equivalente a 73% do seu salário. "Uso os R$ 140 que a empresa me paga em tíquete e cesta básica para as compras no supermercado", diz Nilda, de 30 anos. Nos últimos meses, ela também mudou de marca - "É um absurdo um quilo de feijão custar quase R$ 5", afirma - e também deixou alguns hábitos de lado. Come menos biscoitos e não faz mais lanches na rua.

Depois da estabilidade proporcionada pelo Plano Real, do bom desempenho da economia que aumentou o nível de emprego nos últimos anos, e dos programas governamentais de transferência de renda que geraram maior poder de compra às classes C, D e E, esse público se acostumou com a idéia de planejar as compras.

"Nos anos 80, com a inflação sem controle, o dinheiro que caía na mão ia direto para o supermercado, senão desvalorizava", lembra o professor de finanças Fábio Gallo Garcia, da Fundação Getúlio Vargas (EAESP-FGV) e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). Agora, o consumidor tem mais contas para pagar e economiza no supermercado.