Título: Política fiscal pró-cíclica impede queda da carga tributária
Autor: Gustavo Loyola
Fonte: Valor Econômico, 02/02/2005, Opinião, p. A11

Os resultados fiscais de 2004 são positivos quando consideradas a obtenção do superávit primário correspondente a 4,6% do PIB - o maior do período pós-estabilização -- e a redução da relação entre a dívida líquida e PIB. Porém, esse quadro favorável é ofuscado pela trajetória de crescimento da despesa pública no ano passado, principalmente daquelas de natureza recorrente. A obtenção desse superávit primário recorde se deveu aos bons resultados da arrecadação tributária, que apresentou um forte crescimento real em relação ao ano anterior. Além dos efeitos favoráveis das mudanças introduzidas na Cofins, as receitas do governo se beneficiaram amplamente do quadro de recuperação da atividade econômica em 2004. Considerado esse aspecto, o "esforço fiscal" empreendido pelo governo no ano passado foi apenas moderado, já que beneficiado por uma conjuntura particularmente favorável. Com efeito, na aparência, julgando-se apenas pelo percentual do resultado primário em relação ao Produto Interno Bruto, a política fiscal, em 2004, teria sido anticíclica, isto é, ao maior crescimento da economia no ano passado teria correspondido uma maior economia fiscal. Porém, observando-se a razão entre as despesas primárias do governo central e o PIB, a conclusão é que, ao contrário, a política fiscal foi pró-cíclica, já que essas despesas passaram a corresponder a 17,4% do PIB, em 2004, ante 16,7% no ano anterior. O aumento da volatilidade do PIB real é apontado na literatura econômica como sendo o grande problema da política fiscal pró-cíclica. Ou seja, nos momentos favoráveis do ciclo econômico, a política fiscal expansionista reforça essa tendência, enquanto os períodos desfavoráveis do ciclo são reforçados por uma política fiscal contracionista. Tal fenômeno gera perdas de eficiência na economia e redução do nível de investimento privado. Com isso, a própria taxa de crescimento de longo prazo do produto é negativamente afetada. O oposto ocorreria caso a política fiscal tivesse desejáveis características anticíclicas. No entanto, no caso brasileiro, a política fiscal pró-cíclica nos anos de bonança traz outros sérios inconvenientes. Entre os países emergentes, o Brasil está na situação peculiar de carregar uma tríade maligna nas suas finanças públicas: (i) elevada razão dívida/Produto Interno Bruto; (ii) excessiva carga tributária como proporção do PIB, quando comparada com países de semelhante renda per capita; (iii) alto grau de rigidez do gasto público, dominado por despesas previdenciárias e com pessoal. Assim, a necessidade de geração de superávits primários é imperiosa. Ao mesmo tempo, o espaço para aumento de impostos é praticamente inexistente, e a capacidade de redução significativa do gasto público, nula. Ora, nesse contexto, a elevação da despesa como proporção do PIB num ano de expressivo crescimento econômico, como 2004, traz duas conseqüências negativas para o futuro. A primeira é o aumento da rigidez da despesa pública, principalmente quando esse incremento se dá majoritariamente nas despesas recorrentes, como pagamentos de benefícios sociais e salários.

O aumento do salário mínimo para R$ 300,00 deve ter enterrado a possibilidade de queda, no corrente ano, da relação despesa primária /PIB

A segunda, decorrência direta da anterior, é o enrijecimento ainda maior da carga tributária, dificultando a convergência para níveis compatíveis com as características da economia brasileira. Numa economia com estabilidade monetária, não há outra maneira viável de se reduzir a elevada e distorcida carga tributária brasileira senão pela diminuição gradual e continuada da razão entre a despesa pública e o PIB. Nos períodos em que o PIB real cresce, como no ano passado, se o governo mantivesse constante o nível real da despesa, a razão despesa/PIB cairia, o que permitiria a redução da carga tributária ou uma maior amortização da dívida pública. Se isso ocorresse por alguns anos consecutivos, seria possível, a médio prazo, a viabilização de uma verdadeira reforma tributária no país, não apenas sob o ponto quantitativo, mas também sob o prisma qualitativo. Infelizmente, observa-se que o governo federal, em algumas ocasiões, tem optado por reforçar a natureza já estruturalmente pró-cíclica da política fiscal, elevando, em termos reais, despesas de caráter recorrente, e que geram maior rigidez nos gastos públicos. Esse comportamento afetou o resultado de 2004 e, pior do que isso, deve influenciar negativamente a execução da política fiscal no corrente ano. Vale ressaltar que se o aumento real da despesa tivesse recaído sobre os investimentos públicos, o dano seria muito menor, porque, entre outras razões, se trataria de gastos de natureza temporária. Como exemplo do incremento observado nas despesas recorrentes, citamos o aumento dos chamados benefícios assistenciais, parte do qual poderia ter sido evitado caso o Executivo não tivesse aceitado passivamente a elevação de despesas embutida no Estatuto do Idoso. O aumento real do salário mínimo também foi outra fonte de elevação do gasto como proporção do Produto Interno Bruto no ano passado, tendo em conta seus efeitos perversos sobre os benefícios previdenciários, principalmente na situação de queda de inflação observada desde 2003. Da mesma forma, o ingresso crescente de pessoal no setor público já cobrou parte de seu preço no balanço das contas fiscais de 2004, embora seus piores efeitos estejam ainda por vir. O mais grave é que o aumento do salário mínimo para R$ 300,00 deve ter enterrado qualquer possibilidade de queda, no corrente ano, da relação despesa primária /PIB, ainda que o governo cumpra a meta de superávit primário de 4,25% do PIB, e que, no cenário otimista, a economia brasileira cresça 4% em termos reais. Com isso, a redução dos ônus tributários sobre a sociedade brasileira torna-se-á um objetivo ainda mais distante no tempo, assim como mais vagarosa tenderá a ser a queda do endividamento do setor público como proporção do PIB.