Título: Na defesa do Mercosul, Brasil quase pára Doha, mas impasse foi superado
Autor: Moreira , Assis
Fonte: Valor Econômico, 23/06/2008, Brasil, p. A2

O Brasil praticamente desligou da tomada o tênue fio que mantém ligada a Rodada Doha, na quinta-feira, após um confronto com os Estados Unidos sobre flexibilidade para as indústrias do Mercosul, em um dos momentos mais dramáticos em sete anos da negociação para liberalizar o comércio global.

O resultado é que depois de intervenções do diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), Pascal Lamy, e de trabalhos feitos por economistas da entidade durante todo o fim-de-semana, surgiu uma nova opção para garantir a proteção para o Mercosul. Com isso, ontem à noite, a negociação global recuperou um sopro de vida, depois de a temperatura ter subido forte nas reuniões fechadas, chegando a beira do precipício como nunca havia ocorrido antes.

A negociação sobre a liberalização de produtos industriais estava empacada porque os Estados Unidos, apoiados por outros países ricos, recusavam a metodologia para definir as flexibilidades para as indústrias do Mercosul. Em uma proposta desenhada para o Mercosul, o texto do mediador da negociação, o canadense Don Stephenson, sugere que as uniões aduaneiras possam proteger entre 12% a 14% de suas tarifas de importação industriais, cortando só pela metade do que for fixado para outros produtos. Mas essa flexibilidade não pode superar entre 12% e 19% do valor do comércio do bloco. A questão é como calcular esses percentuais.

A metodologia do mediador prevê que o Mercosul calcule o valor do comércio como bloco. Mas os EUA, sobretudo, recusavam aceitar o Mercosul como união aduaneira e queriam o cálculo separadamente. Achavam que, como está no texto atual, o Brasil ganharia flexibilidade adicional para proteger sua indústria, se escondendo atrás dos outros sócios.

Pelos cálculos do Brasil, porém, o que os americanos queriam era inaceitável porque, na prática, retirava boa parte das linhas tarifárias que o bloco quer proteger. Por exemplo, o valor do comércio de Argentina, Paraguai ou Uruguai receberia o teto previsto das flexibilidades, mas os países só poderiam usar metade das linhas negociadas. Ou seja, se fosse negociado 12%, só poderiam proteger cerca de 6% das tarifas de importação porque, do contrário, rompiam o teto do valor do comércio.

Os EUA organizaram um grupo denominado G-12 para tentar uma solução para a negociação industrial. Além do Brasil e EUA, o grupo reúne UE, Canadá, Japão, China, Índia, África do Sul, Austrália, México, Paquistão e Malásia. O impasse, contudo, continuou em torno do Mercosul e o comissário de comércio da União Européia, Peter Mandelson, chegou a advertir que a semana era decisiva para Doha. Na quinta-feira, o Brasil avisou que na verdade a negociação já estava na prorrogação.

E o momento da verdade chegou quando o representante brasileiro, Roberto Azevedo, bateu simbolicamente na mesa: avisou que ou se resolvia a proteção para o Mercosul antes de uma reunião de ministros, ou a negociação deslizava de vez para o fiasco. Foi o que negociadores chamam de "ter tirado a tomada" da negociação. O Valor apurou que na mesma quinta-feira a tarde, Azevedo voltou a se reunir com o embaixador americano Peter Allgeier e indagou se os EUA buscavam solução ou jogavam para a arquibancada.

Alertado de que a negociação global corria para o abismo rapidamente, o diretor-geral da OMC, Pascal Lamy, convocou Azevedo e Allgeier para uma conversa, em meio à expectativa de outros embaixadores visivelmente pessimistas diante do tamanho do impasse. Fontes concordam que, nesse encontro na sexta-feira cedo no gabinete de Lamy, com vistas para o lago de Genebra, o Brasil e os EUA "lavaram roupa suja" diante do olhar atônito do diretor-geral.

Lamy alertou que o fiasco daquele jeito estava ao alcance da mão. E para evitá-lo propôs que os economistas da OMC fizessem simulações sobre o real valor do comércio do Mercosul para tranqüilizar os dois beligerantes sobre a proteção que o bloco de fato utilizaria para sua indústria.

No mesmo dia, Azevedo deu uma entrevista à imprensa internacional advertindo que, sem progressos na negociação agrícola e cobranças desproporcionais na área industrial, os trabalhos do G-12 estavam ameaçados de serem encerrados ontem, domingo - ou seja, Doha entraria numa longa fase de congelamento.

No sábado, Brasil e EUA voltaram a se reunir na OMC com economistas da entidade, para ver como as simulações seriam feitas. Segundo fontes próximas da entidade, os economistas passaram a madrugada de sábado para domingo preparando opções. Quando o G-12 se reuniu ontem de manhã, os dois beligerantes apresentaram cinco opções de flexibilidade que saíram do secretariado da OMC, como tentativa para satisfazer Washington e o Mercosul

O grupo aceitou uma. Negociadores evitam detalhar, mas avisam que ela mantém a flexibilidade defendida pelo Brasil. O Brasil manteve uma postura cautelosa. Azevedo disse que a proposta será examinada com os outros países do Mercosul. Os EUA diminuíram a pressão. Ontem, tarde da noite, após as horas provavelmente mais perigosas de Doha, Roberto Azevedo, procurado pela reportagem, limitou-se a dizer: "Estou vendo de novo uma luz no túnel".