Título: De aplicador a devedor
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 24/07/2008, EU & Investimentos, p. D1

Logo na entrada do escritório, a cristaleira com 49 miniaturas, que tem desde a clássica Ferrari vermelha até um Cadillac De Ville, revela a paixão por carros do contador Maurício Pereira Ribeiro, de 39 anos. O que ele não esperava é que, em janeiro deste ano, em meio ao forte vai-e-vem da bolsa, ele perderia o equivalente a uma BMW zero, ou seja, quase R$ 500 mil, e ainda ficaria devendo R$ 70 mil para a corretora. Foi a reta final de uma estratégia que começou em maio de 2006, quando Ribeiro resolveu buscar diversificação para seus investimentos e se aventurar nas trilhas da renda variável. Antes, suas aplicações estavam em imóveis e fundos de renda fixa.

A perda dessa magnitude, ainda mais com uma dívida junto à corretora, só foi possível porque Ribeiro estava alavancado, ou seja, seus investimentos assumiam um risco maior do que seus próprios recursos por meio de derivativos. No caso do contador, eram os chamados contratos a termo, que estabelecem que um ativo será comprado e vendido no futuro por um preço fixado no presente.

Usando o exemplo de um automóvel, o termo funciona como alguém que quer garantir o preço do carro que vai pagar daqui a um mês. Combina-se o preço, mais um adicional referente aos juros do período até o pagamento final e dá-se uma garantia, a margem. No caso das ações, essa garantia em geral é a carteira do investidor. No vencimento da operação, se o carro estiver mais caro no mercado, o comprador ganha a diferença. Mas, se o preço cair, ele perde, pois terá de pagar o preço mais alto que o de mercado, além do juro.

O problema é quando se usa todo o dinheiro para dar sinais em vários carros. Passa-se, assim, de comprador de carros a especulador. Se os preços sobem, pode-se ficar rico com os carros comprados a termo mais baratos, vendendo-os no mercado. Mas se caem, é um desastre, pois será preciso pagar a diferença entre o termo e o preço de mercado. O prejuízo é ampliado no caso das ações pelo fato de a carteira do cliente, dada como garantia, também se desvalorizar com a queda do mercado. É preciso então vender tudo e ainda completar o que falta para pagar.

Com a bolsa em alta constante nos últimos cinco anos, a tentação dos ganhos elevados e rápidos popularizou esse instrumento e fez disparar o volume do mercado a termo. Segundo dados da Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa), neste ano, somente até o dia 22 de julho, o total de operações a termo atingiu o valor total de R$ 31,987 bilhões, 73% mais que no mesmo período do ano passado. O total de operações também disparou, para 400.615, 83% mais que os 218.935 negócios em 2007, até julho.

A questão importante é se os investidores que estão entrando nesse tipo de operação estão realmente cientes do risco que correm. A história de Ribeiro mostra que talvez não. O contador diz que nunca foi orientado sobre os riscos das operações a termo e afirma que os contratos foram feitos diretamente pelo especialista que cuidava de sua carteira na Elite Corretora. "Eu queria uma carteira previdenciária e em nenhum momento fui informado do risco a que eu estava exposto", diz. "Quando eu entrei na bolsa, não queria aventura; não sou milionário para fazer aventura com o meu dinheiro". E admite: "Achei que eu não precisava ficar de olho, porque estava pagando para alguém cuidar do meu dinheiro."

Além de Ribeiro, outros dois investidores - o sócio do contador e uma senhora aposentada de 81 anos que tinha como procurador o filho - entraram com processos na Bovespa junto ao ombudsman do mercado com a mesma reclamação. Os três pleiteiam indenização do antigo Fundo de Garantia da bolsa, hoje Mecanismo de Ressarcimento de Prejuízos.

O especialista que atendia os três é Luiz Barsi Filho, de 69 anos, conhecido no mercado por ser maior acionista individual do Banco do Brasil e dono de fatias importantes da Eternit e da Unipar. Barsi Filho se defende e conta uma história bem diferente. "Nunca administrei a carteira deles; o cliente vem até aqui, eu recomendo e ele dá a ordem de compra", diz o executivo, que é agente autônomo e, portanto, por lei, não pode atuar como administrador de carteiras. Em geral, os agentes autônomos podem atuar comprando e vendendo os papéis, mas a pedido do cliente. "Eles me procuraram e montamos uma carteira previdenciária que, no meio do caminho, teve seu perfil alterado, pois eles começaram a operar termo", afirma. "Algumas pessoas que operam termo aqui foram bem-sucedidos e eles viram o sucesso e resolveram fazer igual." Barsi Filho observa também que todos esses investidores receberam os Avisos de Negociação de Ações (ANAs) e, portanto, estavam cientes do que acontecia nas carteiras.

Todo esse diz-que-diz-que estaria resolvido se a corretora tivesse gravado as supostas ordens dos investidores. Essa é uma prática comum e obrigatória nos negócios da BM&F, mas não no caso dos negócios fechados junto à Bovespa. Em 2007, o ombudsman do mercado, Joubert Rovai, chegou a sugerir para o Conselho de Supervisão da bolsa que adotasse a obrigatoriedade para as corretoras de um sistema de gravação de diálogos com clientes. O Conselho agora avalia a sugestão.

Rovai também já chamava a atenção para a atividade de agente autônomo e sugeriu que as corretoras cadastrem os clientes indicador por esses profissionais apenas no mercado à vista. Segundo o ombudsman, sua proposta ao Conselho é que, ao decidir fazer um termo, o investidor expresse por meio de algum documento que está ciente dos riscos. "São propostas que têm tudo para serem implementadas", diz.

Independente de quem tem razão, a lição dessa história é que o investidor deve conhecer bem o risco que está correndo e acompanhar de perto onde está investindo, especialmente se a palavra derivativo estiver envolvida.