Título: A encruzilhada do Itamaraty
Autor: Sergio Leo
Fonte: Valor Econômico, 03/01/2005, Brasil, p. A1

O Itamaraty começa o ano ainda sem digerir a profunda mudança ocorrida no cenário das negociações internacionais, não só externamente, mas também dentro do país. Nos dois primeiros anos do governo Lula, a sucessão de êxitos da diplomacia brasileira e os incertos resultados da ortodoxia adotada no campo econômico consolidaram a impressão de que só na política externa o governo do PT mantinha uma bem-sucedida coerência com as propostas pré-eleitorais do partido. Hoje, quando a política econômica colhe bons resultados, em matéria de crescimento, geração de empregos e equilíbrio nas contas com o exterior, apesar da incerteza ainda reinante sobre a vulnerabilidade externa do país, a diplomacia brasileira inicia o terceiro ano de governo sob uma torrente de críticas e desafios ameaçadores em suas prioridades de política externa. Em seus primeiros meses de mandato, o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, pôde, com satisfação, calar os que criticavam iniciativas como a formação do Grupo de Amigos da Venezuela, ação afinal apontada pelo governo Bush como uma das maiores contribuições do governo Lula em matéria de política externa no continente. Amorim mostrou ser possível, também, adotar uma estratégia radicalmente diferente da assumida pelo governo anterior. Fernando Henrique buscou uma atuação corajosa do Brasil no cenário mundial, limitada, porém, pela avaliação de que a agenda internacional é fixada pelos países de maior peso econômico e militar. Caberia ao país posicionar-se da melhor forma possível em relação a essa agenda, às vezes explorando contradições nas próprias sociedades desses países, como na conferência da Organização Mundial do Comércio (OMC), em Doha, no Catar, quando, com apoio de organizações não-governamentais do primeiro mundo, o Brasil obteve uma decisão favorável à quebra de patentes farmacêuticas em casos de ameaça à saúde pública. O governo Lula aposta em outra linha de ação, e defende ser possível estabelecer novos rumos e prioridades à agenda internacional, mais de acordo com as necessidades dos países em desenvolvimento. Essa estratégia deu impulso aos projetos de associação do Brasil com os outros países sul-americanos e com grandes países emergentes. Levou, por exemplo, à criação do G-20, grupo de países em desenvolvimento que se opôs ao tímido avanço na liberalização do comércio agrícola, desenhado em um acordo informal entre Estados Unidos e Europa na rodada de negociações da OMC. A diplomacia não tem objetivos próprios, defende os objetivos do país, conforme a orientação do governo. O ano passado foi marcado, porém, por forte descontentamento dos produtores agrícolas (que se refletiu no Ministério da Agricultura) com a atuação do Itamaraty. A paralisação das negociações para a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) e entre o Mercosul e a União Européia também levou o setor industrial a manifestações inusitadamente críticas sobre as estratégias da diplomacia. Até a manutenção do Mercosul, prioridade do governo e, até recentemente quase consenso nacional, foi posta em questão por segmentos importantes do empresariado.

Estratégia precisa ser mais eficiente

É visível o interesse de outras áreas do governo em influir mais decisivamente na atuação do país na esfera internacional, e, no ano que passou, ficou clara a diferença de visões entre os ministérios. As equipes da Fazenda e da Agricultura endossam a contragosto a defesa feita pelo Itamaraty, de sujeição das negociações comerciais a objetivos estratégicos como as políticas industrial e de patentes. No Ministério do Desenvolvimento, defende-se uma postura mais agressiva em relação às medidas protecionistas da Argentina, e fala-se timidamente em revisão das ambições no Mercosul. Sem conseguir da sociedade um apoio explícito à sua estratégia de negociações, a diplomacia corre o risco de ver sua atuação transformada em motivo de crítica ao governo, fragilizando-se e perdendo espaço para outros grupos, que defendem mudanças de rumo. Ou, pior, o governo Lula arrisca-se a um desempenho esquizofrênico, com danos à credibilidade de seus negociadores e mensagens ambíguas a seus parceiros e adversários no campo internacional. Já em 2004, diferenças de interpretação entre o Ministério do Desenvolvimento e o Itamaraty em relação à compra dos caças Sukhoi para a Força Aérea Brasileira (FAB) alimentaram desentendimentos com o governo russo, durante a visita do presidente Vladimir Putin. Até agora, os diplomatas têm respondido à crescente onda de críticas internas com comentários irritados em relação à imprensa, que as veicula. É necessária uma resposta melhor que essa, para apresentar aos círculos internacionais o apoio interno indispensável à ousada ação internacional do governo Lula. Para falar de apenas um desafio externo do governo, deve-se elogiar a compreensão do Itamaraty em relação ao desafio da relação entre Brasil e Argentina, e a necessidade de responder com serenidade, e não com patriotadas, às declarações e decisões agressivas do vizinho no campo comercial e diplomático. Mas o fortalecimento do Mercosul, indispensável ao projeto estratégico de Lula, pode atolar na decisão argentina de recuperar a indústria local por meio do protecionismo comercial, e desmoralizar-se com as manifestações do temperamento do presidente Néstor Kirchner. Um dos primeiros feitos do governo Lula, em seu início, foi estabelecer um plano de ação para acabar com as imperfeições da união alfandegária do Mercosul. A maioria das tarefas previstas para 2004 ficou para depois, entre elas a criação de um mecanismo para eliminar a dupla cobrança da tarifa externa comum e para permitir a livre circulação de bens de indiscutível produção regional, a criação de um regime especial comum de importações e a conclusão de regulamentos comuns para antidumping e medidas compensatórias. Objetivos ainda mais ambiciosos foram programados para os dois anos que restam do governo. Lula e Amorim terão de encontrar uma estratégia mais eficiente e clara para alcançá-los.