Título: Líder do governo trabalha contra o Planalto
Autor: Carneiro, Luiz Orlando
Fonte: Gazeta Mercantil, 12/05/2008, Política, p. A9

Brasília, 12 de Maio de 2008 - A demarcação da reserva Raposa/Serra do Sol deixou em campos opostos o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e seu fiel escudeiro no Congresso, o líder do governo no Senado, o senador Romero Jucá (PMDB-RR) que, neste caso, virou um líder contra o governo. Jucá bombardeia a reserva demarcada em área contínua e admite que tem usado o seu prestígio e condição política para influir, na medida do possível, para que o Supremo Tribunal Federal (STF) derrube o decreto de Lula e evite que os não-índios sejam obrigados a sair dos campos de arroz e vilas que ocupam dentro da área de 1,7 milhão de hectares. A proposta de Jucá tem tudo o que o governo não quer: a exclusão dos municípios de Normandia, Uiramutã, o Vale do Arroz - que ocupa 6,48% da reserva -, a sede da Vila Surumu, principal foco dos conflitos, a área que pode servir para a construção da Hidrelétrica de Cotingo e a Lagoa de Caracaranã. Nesta entrevista à Gazeta Mercantil o líder de governo tenta justificar suas escolhas e sua independência do Palácio do Planalto. Gazeta Mercantil - Como o senhor maneja o fato de ser líder do governo no Senado, mas tem uma posição contrária à do governo com relação à reserva indígena Raposa/Serra do Sol? Independente de ser líder do governo, o meu mandato é de senador por Roraima. Assim, a minha obrigação primeira é com a condição do estado. A minha posição é anterior ao governo Lula. Ela é mesmo anterior à liderança que eu tive no governo Fernando Henrique. A demarcação efetiva ocorreu em 1998, no governo Fernando Henrique, quando eu ainda não era líder do governo. Agora, eu exerço a liderança do governo como um instrumento da minha ação política para ajudar o País, mas também como um instrumento muito positivo para ajudar Roraima. Gazeta Mercantil - Qual é a posição do senhor nessa disputa? Eu defendo uma solução intermediária. Em 1998, nós tivemos duas visões muito polarizadas. De um lado estava um segmento indígena, que é o CIR, junto com a Igreja Católica e algumas ONGs querendo a demarcação contínua e a retirada de todas as pessoas não-índias dentro da área demarcada. Do lado do governo do estado, uma parte da bancada federal, mais o governador, mais alguns segmentos indígenas defendiam uma demarcação em ilhas. Onde tivesse aldeia, ali se faria uma reserva indígena e você teria uma malha de vários pontos de áreas indígenas que não seriam ligadas entre si. Gazeta Mercantil - E, naquela ocasião, os três senadores representantes do estado tinham essa posição? Não, os dois senadores tinham essa posição e eu tinha uma posição intermediária. Eu queria defender as duas questões que eram mais relevantes dos dois lados: a demarcação contínua, mas com a exclusão de quatro áreas que são estratégicas para o estado e onde não há índios. Essas áreas são o Vale do Arroz, que ocupa 6,48% da reserva, o distrito de Surumu, que é uma vila de mais de 100 anos e seria o ponto de apoio de serviços públicos para a própria comunidade indígena, com comércio e tudo mais, e que representa apenas 1,15% da reserva, a área da futura barragem do Cotingo, que é o único local que nós temos para fazer um conjunto de hidrelétricas de grande porte, e onde também não há índios, mais a área da lagoa do Caracaranã, que é um hotel turístico. É uma lagoa com quiosques, com área de acampamento e onde também não tem índio morando. Gazeta Mercantil - O senhor não tentou influir na decisão do governo de homologar a reserva em 2005? Tentei, tentei. Eu coloquei isso por escrito para os dois presidentes (FHC e Lula), coloquei isso por escrito para todos os ministros da Justiça dos dois governos. Infelizmente, eu sou líder do governo, mas o governo não faz tudo o que eu quero. Eu fui derrotado. A meu ver, se tivesse prevalecido o meu ponto de vista, nós não estaríamos enfrentando essa crise, e não teríamos a possibilidade de o Supremo tomar uma decisão ainda mais contundente do que essa. Gazeta Mercantil - O que o STF vai decidir é se o decreto que homologou a demarcação é ou não constitucional. O Supremo não pode legislar... O Supremo está numa sinuca. A gente nota lá preocupação com o andamento desse processo, como símbolo de uma série de questões no País. Mas o STF é preso aos autos. Então, uma coisa é a intenção política, outra coisa é o espaço jurídico motivado nos autos. Agora, o ministro Carlos Ayres Britto é relator de umas 30 ações sobre a questão. O STF não precisa julgar uma só. Pode fazer uma juntada e tirar um posicionamento. E também determinar um laudo antropológico novo a ser feito. Pode ser um caminho. Gazeta Mercantil - O senhor acha que é muita terra para pouco índio? Não, eu não acho assim. Os índios são brasileiros, eu não vejo a preocupação separatista de criar aqui um outro país, não há risco na fronteira com a Guiana. O que eu vejo é o seguinte: há um confronto, que se exacerbou por conta da posição radical dos dois lados. E nesse confronto, está se criando uma situação muito difícil para Roraima. Imagine o seguinte: você tem aqui (aponta no mapa) grandes plantadores de arroz. Se você chega lá e diz que isso, amanhã, é área indígena, todo mundo tem de sair, sem que seja devidamente indenizado. Qual a segurança jurídica que outros plantadores terão para ir para outro canto que, depois de amanhã, pode ser também designado como área indígena? Gazeta Mercantil - O senhor diz que, se for mantida essa demarcação contínua como está, Roraima praticamente volta a ser um território? Não diria isso, mas eu diria que esse é um percalço. Eu tenho conversado com o presidente e com o ministro da Justiça. Além de definir essa questão, o governo tem de dizer claramente que acabou o processo de demarcação de terras indígenas em Roraima. Não pode ficar a mercê de um antropólogo que venha daqui a cinco anos e diga o seguinte: agora tem de juntar a área tal com a área qual. Qual foi a política deles aqui? Foi espalhar, foi criar comunidade indígena, foi criar aldeia. Não tinham essas aldeias todas. Deliberadamente, eles desmembraram aldeias. Então, a discussão é o que é imemorial e mais do que isso, o que é do imemorial que é fundamental para a sobrevivência desse povo indígena. Gazeta Mercantil - A soma dessa reserva com a outra dá 46% de áreas indígenas. Está em perigo o princípio federativo? Não, não acho que esteja em perigo. Agora, eu acho que se está entrando deliberadamente em uma linha que é vamos criar reserva para não deixar haver exploração econômica na Amazônia. Essa é a linha. É o que está por trás disso. Gazeta Mercantil - A solução pode ser do Supremo? Essa da reserva legal não. A da reserva legal, nós temos que rediscutir o processo dentro do governo e no Legislativo. Isso é uma lei. Então ela pode ser proposta pelo Legislativo. O que você não pode fazer é dizer o seguinte: vamos usar deliberadamente uma política de demarcação de grandes áreas indígenas para poder haver o travamento da Amazônia. Tem um projeto meu de regulamentação de mineração de área indígena que já foi aprovado no Senado e está na Câmara. E vai ser aprovado. Gazeta Mercantil - Polêmico, aliás... É polêmico para quem quer travar o desenvolvimento. A Constituição diz que pode haver mineração em terra indígena desde que haja concordância da comunidade. Cada caso é um caso. Agora, o que é melhor para o Brasil? Nós termos uma exploração responsável lá na área dos Cintas-Larga, que é uma área de diamante, ou ter aquela chafurdação que tem hoje lá, com os caras explorando sem pagar imposto, corrompendo gente, aquele tumulto? Gazeta Mercantil - E essa exploração seria nacional ou estrangeira? Tanto faz. É licitação pública. Quem pagar o royalty maior para a comunidade indígena, dentro da regulamentação que o país tem. Gazeta Mercantil - Então o senhor acha que a política indigenista do governo está errada? Não. Eu acho que a política indígena que vem ao longo do tempo não evoluiu. É a mesma política. A política indígena do governo Lula é a mesma política do governo Fernando Henrique, que é a mesma política do governo Sarney. Ela mudou um pouco quando eu assumi a presidência da Funai. Depois voltou de novo, assumiu o Sydney Possuelo e o discurso virou de vez. Então a questão não é do governo Lula, nós temos é que ter uma nova proposta, nós temos que discutir isso. Gazeta Mercantil - O general Heleno então estaria certo? Acho que o general Heleno verbalizou uma visão legítima das Forças Armadas. Gazeta Mercantil - Há interesse em travar o desenvolvimento? Há um discurso preservacionista em parte do País que foi exacerbado ao longo dos anos. Com alguma razão em determinados casos, outros não. O Brasil serve, por exemplo, para esterilizar a Amazônia por conta da questão ambiental, mas não serve para produzir álcool de cana-de-açúcar. É um contra-senso da questão internacional. Gazeta Mercantil - Essa política indigenista então engessa o crescimento? Ela cria problemas pontuais para o desenvolvimento. Nesse caso de Roraima, ela trava o desenvolvimento do Estado. Eu não quero julgar em outras áreas, mas nessa área específica ela trava. Gazeta Mercantil - Sobre a Raposa/Serra do Sol, há alguma maneira de resolver sem uma derrota do governo Lula? Eu acho que a questão não se trata mais de derrota do governo. O governo tomou uma posição, eu respeito, eu não concordo e acho que deveria ter sido tomada outra posição, e lá em 1998. Gazeta Mercantil - Qual sua expectativa em relação à decisão do STF? A minha preocupação como senador de Roraima, com a experiência de quem já foi governador e de quem já foi presidente da Funai por três anos é que qualquer que seja a solução, ela deve gerar equilíbrio depois de tomada. Porque aqui tem o dia seguinte. Você faz o decreto, qualquer força pode ficar ou pode sair, mas depois as forças vivas dessa região vão ter de conviver entre elas. E elas não podem conviver se atacando. Se você transformar a região em um barril de pólvora aí pode começar a discutir separatismo. Se todo mundo tiver satisfeito, não há crise posterior. O segredo dessa questão é encontrar a solução que seja menos traumática. Gazeta Mercantil - O senhor acha que a probabilidade de estourar um conflito persiste? O conflito sempre é possível. A minha preocupação não é só o conflito em si, é o resultado do problema, é o tipo de visão que a sociedade de Roraima vai ter da população indígena, o tipo de relação que vai se construir. Confronto pontual sempre é possível. Se eu disse que vão se formar milícias, vão transformar aquilo em uma Sierra Maestra, umas Farc indígenas, eu não vejo isso. Agora, os conflitos pontuais existirão, a divisão existirá. Você fará uma divisão entre os próprios índios, porque eles não tem a mesma posição. Metade dos índios está de um lado, metade está de outro. Gazeta Mercantil - Essa questão acabou se tornando emblemática ... A questão foi conduzida de uma forma que virou uma questão nacional. A decisão do Supremo não será para a Raposa/Serra do Sol, mas sim para a política indigenista brasileira. Gazeta Mercantil - Você tem duas forças federais em oposição na situação. Quais os riscos embutidos nisso? Eu não diria que estão em direções opostas. O Exército verbalizou uma preocupação, que é legítima, mas não é todo o problema, não é o ponto fulcral, na minha visão. E houve um problema pontual, mas que terminou refletindo no posicionamento do Exército, que foi a questão da ação da comunidade indígena não tratar bem o general Monteiro (Eliéser Girão Monteiro Filho, comandante da 1 Brigada de Infantaria de Selva, sediada em Boa Vista), que comanda o batalhão de infantaria, a brigada em Roraima. Então você teve vários fatos que levaram a esse tensionamento. Não vejo a questão como uma insubordinação do Exército, que estaria marcando posição. Não vejo assim. Gazeta Mercantil - O Ministério da Justiça fez gestões para o Exército participar, primeiro pediram apoio para a retirada, até chegar a essa posição que o senhor disse. Não parece clara o antagonismo entre o Ministério da Justiça e o Exército? O Exército disse que não tinha condições de estrutura para ir e pediu uma série de coisas que não houve condições de atender. O Tarso Genro preferiu fazer a operação com a Polícia Federal e com a Força Nacional. Até aí, você não teve nenhuma ação ostensiva do Exército contra isso. Agora, o Exército, as pessoas que comandam o Exército na Amazônia têm uma preocupação com a questão da fronteira. E verbalizaram isso. Na minha visão, essa questão não é a questão central. Essa terra é da União. Ela está guardada, aqui no Uiramutã tem um pelotão, em Normandia tem um pelotão, em Bonfim tem um pelotão. Então há o acesso rápido em qualquer momento e você não tem na fronteira nenhum risco. Gazeta Mercantil - E a prisão do prefeito Paulo César Quartiero? Acho lamentável. Ela termina reforçando a imagem do Quartiero nesse processo de disputa em Roraima. O Quartiero está atuando politicamente e a prisão transforma ele em uma vítima. Gazeta Mercantil - O governo deu um palanque a ele? Eu diria que aumentou o tamanho do palanque. Gazeta Mercantil - Para o senhor, então, a posição do governo tende a acirrar o problema? Já acirrou. Nós temos um confronto, eu estou querendo arranjar uma solução. Eu não estou tendo um problema com o governo porque essa minha proposta é anterior à minha estada como líder. Isso não muda minha relação com o governo. Sou muito leal ao presidente Lula e digo o que eu concordo e o que eu não concordo. Ser líder do governo não significa que eu vou concordar 100%. O que eu não faço é chegar em Roraima e ficar falando mal do governo em palanque, isso eu não faço. Agora, a discussão sobre a Raposa/Serra do Sol se esgota com a decisão do Supremo e nós vamos ter que administrar a conseqüência. E para melhorar essa administração, é melhor eu como líder do governo do que fora da liderança. (Gazeta Mercantil/Caderno A - Pág. 9)(Luiz Orlando Carneiro, Vascon celo Quadros e Karla Correia)