Título: A política externa além da Páscoa
Autor: Saraiva, José Flávio Sombra
Fonte: Correio Braziliense, 24/04/2011, Opinião, p. 15

Ph.D. pela Universidade de Birmingham, Inglaterra, é professor titular de relações internacionais da UnB e presidente da Associação Brasileira de Relações Internacionais (Abri)

A política externa do Brasil, que recuou à tradição, ao protocolo, ao escrito, chega à Páscoa como uma área positiva no balanço dos cento e poucos dias do novo governo. Em meio à crise da Líbia, Obama pontificou na Brasília insossa, mas brilhou na plástica do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Discurso forte e de valores políticos e sociais que reaproximam Brasil e Estados Unidos.

Os brasileiros mais simples brilharam diante dos olhos vivos e charmosos de um negro norte-americano, familiarizados com relações de simpatia e cooperação. Nem Lula recebera o novo mais poderoso chefe de Estado do mundo. A passagem de Obama, embora não tenha gerado fato espetacular, reconhece o papel internacional do Brasil. Gostaram os ianques das novas posições brasileiras no campo da questão nuclear iraniana e dos direitos humanos.

Poucas semanas depois, a presidente Dilma desembarcou, para visita de Estado, na segunda economia da Terra. A China foi a primeira visita externa da nova governante do Brasil com o objetivo de agir no complexo e traiçoeiro xadrez da política internacional. Geraram-se aqui expectativas positivas e algumas desconfianças em relação às potencialidades da longa viagem ao centro do oriente. Não se mudou o padrão da relação do Brasil com a China com a visita da chefe de Estado. Mas aparecem os primeiros sinais de que os chineses, negociadores duros, estão dispostos a trazer novos elementos para a agenda bilateral. Apesar de tudo, a China seguirá sendo o maior parceiro comercial do Brasil. Continuará a desfrutar os benefícios do comércio assimétrico, neocolonial, no qual o Brasil de hoje faz lembrar o Brasil do século 19. Enquanto eles exportam valor agregado, contentamo-nos com o padrão agroexportador da República Velha e de minerais in natura em pleno século 21.

Isso não mudou com a visita da presidente Dilma à China. Pouco importa o superavit comercial fugidio do Brasil do momento, baseado no preço elevado e irreal das commodities. O que garante futuro às sociedades organizadas em Estados nacionais é a capacidade de sustentabilidade econômica com agregação de valor, que significa empregos de melhor qualificação e maior capacidade de manter-se em condições de conviver com as tecnologias do futuro. O palco internacional é egoísta sempre. O multilateralismo é declinante. Isso os chineses praticam, como toda nação madura, ao defender seus interesses nacionais.

O governo do Brasil quer muito da China, e nem tudo será possível. Quer investimentos na infraestrutura, no trem-bala, no pré-sal e no fabrico de aviões. Mas os investimentos chineses na infraestrutura do Brasil dependerão da disposição de movimentar o maior parque industrial para fora da China, o que nem sempre convém aos chineses, uma vez que o mercado interno tem pela frente ainda uma grande margem de expansão.

A China parece preferir exaurir a África nessa primeira fase da expansão de seu capitalismo nacional. A África, para os chineses, está mais próxima na geografia e na política, em especial na realpolitik dos direitos humanos maltratados tanto em Pequim quanto em várias capitais africanas. E lá é mais fácil o controle do poder político local do que no caso dos governantes da América Latina, acometidos nos últimos, como dizem os chineses, ¿desses desejos democratizantes¿ que atrapalham o crescimento econômico com o uso de alto carbono.

Apesar dessas diferenças entre os dois países, a presidente do Brasil encontra uma China com ideia internacional próxima à Terra de Pindorama. Os países do Bric ¿ agora Brics ¿, cujo acrônimo já data de uma década, necessitam influir sobre o traçado internacional. É isso que há em comum entre o Brasil e a China, e desses dois em relação à Rússia, Índia e a África do Sul. Querem uma agenda nova, a contemplar uma governança global, menos europeia e menos norte-americana; mais sincrética, desenvolvimentista, popular, de consumo de massa para os povos emergentes.

A lição é clara. A paz da Páscoa ameniza os verdadeiros desafios do Brasil no mundo em transformação. Se hoje há um G2 e muita ginástica na economia política internacional entre Washington e Pequim, nada garante que essa plataforma promova governança global. Por outro lado, nem Washington nem Pequim têm interesse em mudar o diretório político das Nações Unidas que os beneficia. Mas Pequim busca no Brics o contrapeso do que os Estados Unidos buscam no G8. Movimentar-se no mundo movediço que temos é obrigação de um Brasil ainda carente de meios para seu desenvolvimento e projeção externa e, enfim, não se pode hipotecar soberania apenas para a compra de quinquilharias estrangeiras.