Déficit em outubro é de R$ 8,1 bilhões, o pior para o mês desde 1947. No ano, chega a 3,74% do PIB

Gabriela Valente

BRASÍLIA - Em outubro, as contas externas tiveram o maior déficit da história para o mês: US$ 8,1 bilhões. É o pior desempenho desde que o Banco Central (BC) começou a registrar os dados, em 1947. Com isso, nos dez primeiros meses do ano, as transações correntes (resultado de todas as trocas de serviços e comércio do Brasil com o resto do mundo) acumulam déficit de US$ 70,7 bilhões, o mais alto para o período e equivalente a 3,74% do Produto Interno Bruto (PIB, conjunto de bens e serviços produzidos no país em um ano).

A piora nas contas externas decorre do aumento dos gastos com juros e serviços e da elevação das remessas de lucros e dividendos ao exterior. O resultado negativo de outubro ficou acima das apostas do mercado, que estimava um déficit de US$ 7,5 bilhões. A expectativa é que haja um ajuste lento e gradual.

- Apesar de o dólar estar melhor para os exportadores, o preço do nosso principal produto, que são as Commodities , caiu no mercado internacional. E o dólar ainda não subiu o suficiente para inibir as pessoas a gastar - explicou o sócio da Canepa Asset Management Alexandre Póvoa.

Para ele, um déficit em conta corrente não necessariamente é ruim. Isso porque o Brasil continua a atrair investimentos estrangeiros diretos - recursos usados para aumentar a capacidade de produção das fábricas e considerados de melhor qualidade. Em outubro, eles caíram 8,4% em relação a igual período de 2013. Chegaram a US$ 5 bilhões em outubro. No entanto, o resultado acumulado neste ano é melhor que o do ano anterior. São US$ 51,2 bilhões, alta de 4%.

- O que temos é um quadro confortável de financiamento. A maior parte é financiada pelo investimento estrangeiro direto - avaliou Túlio Maciel, chefe do Departamento Econômico do BC.

A expectativa dos analistas e do próprio governo é que o dólar mais caro ajude a arrumar as contas externas brasileiras. Isso porque estimula as exportações e inibe os gastos.

Os turistas já sentiram o peso maior da moeda americana na fatura das férias. Depois de sucessivos recordes, as despesas dos brasileiros com viagens internacionais caíram em outubro. Os gastos foram de US$ 2,1 bilhões, 7,4% a menos que os desembolsos de outubro do ano passado.

Também houve recuo no volume deixado por estrangeiros no Brasil. Os valores caíram de US$ 533 milhões, em outubro de 2013, para US$ 488 milhões no mês passado. Ou seja, os gastos líquidos com viagens internacionais ficaram negativos em US$ 1,6 bilhão, decréscimo de 7% ante outubro de 2013.

Maciel ressaltou que, nos últimos três meses, o dólar teve apreciação de cerca de 15%. O cenário de queda nos gastos deve se repetir nos dados de novembro, que serão divulgados pelo BC em dezembro. Até o dia 20 deste mês, eles indicavam saldo de viagens negativo em US$ 840 milhões. No período, os brasileiros gastaram US$ 1,162 bilhão, enquanto os estrangeiros deixaram US$ 323 milhões no Brasil.

E economistas ressaltam que o dólar pode ficar ainda mais caro. Assim, as contas externas seriam ajustadas naturalmente. Para deixar a moeda americana ficar mais valorizada, o governo teria de estar com políticas fiscais e monetárias bem ajustadas, uma tarefa para a próxima equipe econômica.

- O pano de fundo é muito perigoso: há turbulência no cenário internacional. Talvez o BC deseje que o dólar suba um pouco. Com o lado fiscal e monetário mais ajustado, a moeda americana poderia ir para um patamar mais alto - avalia Póvoa.

Em nota, o BC informou que mudará a metodologia dos cálculo das contas externas para adaptar-se ao Manual de Balanço de Pagamentos e Posição Internacional de Investimento do Fundo Monetário Internacional (FMI). As alterações serão feitas a partir de abril de 2015. "Essa atualização metodológica permitirá o aperfeiçoamento do padrão estatístico nacional, alinhando-o com as melhores práticas internacionais, e garantirá consistência com a nova metodologia das Contas Nacionais a ser adotada pelo IBGE, também em 2015", disse o BC.

Em outro dado divulgado ontem, mais um déficit: a balança comercial ficou negativa em US$ 2,252 bilhões nas três primeiras semanas de novembro. Com um ritmo de queda mais intenso do que as compras no exterior, as exportações somaram US$ 11,735 bilhões no período, e as importações, US$ 13,987 bilhões. No ano, o déficit acumulado é de US$ 4,123 bilhões. Segundo o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, até a terceira semana de novembro, houve queda de 25% nas exportações ante o mesmo período de 2013. Nas importações, houve recuo de 2,5%.

Mesmo assim, o governo continua apostando em um pequeno superávit comercial. Pelos números verificados até agora, isso é cada vez mais difícil: seria necessário haver uma virada até dezembro para o ano fechar com saldo positivo.

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Déficits gêmeos

25 nov 2014

 O Globo

LUCIANNE CARNEIRO

Saldo negativo em transações correntes e nas contas públicas pode aumentar custo de financiamento no país

 

De janeiro a outubro, as contas externas já tiveram rombo de US$ 70,7 bilhões, um recorde. Analistas alertam que, com a piora das contas públicas, o país sofre com déficits gêmeos, fiscal e externo, que juntos já somam 8,6% do PIB, deixando a economia mais frágil. Sozinho, o déficit recorde nas contas externas já é um sinal de alerta para a economia brasileira. O quadro, no entanto, se torna ainda mais preocupante quando se considera a deterioração das contas públicas observada nos últimos anos, especialmente em 2014. Combinados, os chamados déficits gêmeos — fiscal e externo — já correspondem a 8,6% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, segundo levantamento da consultoria Haver Analytics para setembro de 2014, citado pela área de pesquisas do banco de investimentos Goldman Sachs. O déficit fiscal respondia por 4,92% e o externo, por 3,70% do PIB em setembro.

— Isso é um reflexo das vulnerabilidades do Brasil e da deterioração dos últimos anos. Houve uma piora do quadro fiscal, que também levou a uma deterioração externa. Não há dúvidas de que a expansão excessiva dos gastos fiscais contribuiu para as contas externas — afirma o diretor da área de pesquisas de América Latina do Goldman Sachs, Alberto Ramos.

Esse cenário, segundo ele, aumenta os riscos percebidos pelo investidor externo, que pode cobrar mais para financiar nosso endividamento, principalmente quando há expectativa de alta da taxa de juros nos Estados Unidos.

— Os déficits fiscal e externo estão ficando piores. Em um cenário em que as taxas de juros no mundo estão subindo, é de se esperar que o custo do financiamento para o país aumente. Não é que o mercado vá deixar de financiar o Brasil, mas vai cobrar mais por isso — concorda o economista para mercados emergentes da consultoria Capital Economics, Neil Shearing.

Para o professor da EPGE/FGV Fernando de Holanda Barbosa, os déficits gêmeos são hoje uma realidade no Brasil: diante de uma política fiscal muito expansionista, há crescimento do déficit externo:

— O Brasil gasta mais do que arrecada e tem uma poupança muito pequena. Para financiar seu déficit público, recorre à poupança externa, que é a outra face do déficit externo. O déficit público leva ao externo.

A teoria econômica considera que a ligação das finanças públicas com as transações correntes se dá pelo fato de que é preciso recorrer à poupança doméstica para financiar a diferença entre o que o governo gasta e o que arrecada. Como a poupança doméstica é pequena, no entanto, é preciso se financiar no exterior, ou seja, impõe­se a dependência da poupança externa.

AJUSTE FISCAL E CÂMBIO

Avaliação diferente tem o professor do Instituto de Economia da Unicamp Francisco Lopreato. Ele admite que os déficits público e externo estão se deteriorando, mas não acha possível confirmar a existência de déficits gêmeos no país:

— Há uma conjuntura em que o déficit externo está aumentando e o público, também. Isso é uma constatação. Mas a literatura aponta que há déficits gêmeos quando o fiscal leva ao externo, e isso não acontece agora.

Para Lopreato, há alguns fatores que explicam a atual situação das contas externas: o recuo no preço de commodities, a perda de competitividade da indústria brasileira, a apreciação da taxa de câmbio, que torna os produtos brasileiros mais caros no exterior, e, mais recentemente, a crise na Argentina.

— Em oito anos, passamos de um superávit em transações correntes para um déficit, isso é assustador. Será um retrocesso imenso se voltarmos a ter esse tipo de fragilidade e tivermos de elevar os juros para atrair capital — diz o professor da Unicamp.

Para Ramos, Shearing e Barbosa, o ajuste fiscal é o principal caminho para reduzir o déficit nas contas públicas e melhorar o quadro externo.

— É preciso desfazer o que foi feito nos últimos anos. Ter maior comprometimento com a inflação na meta, menos intervenção no câmbio e fazer um ajuste fiscal. É fácil o diagnóstico, mas é preciso coragem para adotar essas políticas. O ajuste é difícil. Mesmo que traga o Ben Bernanke, não é fácil — afirma Ramos, fazendo uma referência ao ex­presidente do Federal Reserve, o banco central americano.

Para Ramos, o esforço fiscal no país virá com alta de impostos e cortes de investimentos.