Depois de 14 horas exaustivas de muita discussão, a base do governo no Congresso Nacional conseguiu eliminar os obstáculos à aprovação do projeto de lei do Executivo que altera a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e elimina a meta fiscal de 2014, o polêmico PLN nº 36/2014. Contudo, as discussões se prolongaram noite adentro e, até o fechamento desta edição, a proposta ainda não tinha sido colocada em votação. 

Em meio à longa batalha entre governo e oposição, que tentou de todas as formas obstruir o andamento dos trabalhos, estavam travando a pauta dois vetos presidenciais que foram mantidos e um projeto de lei que libera recursos para aposentados e participantes do Aerus (fundo de pensão dos trabalhadores das empresas Varig e Transbrasil, entre outras) que foi aprovado. Depois disso, 16 requerimentos que tentavam obstruir a pauta foram derrubados. 

Para o líder do PT na Câmara, deputado José Guimarães (CE), a oposição errou a estratégia. "Eles apenas tentaram cancelar a sessão. Não foi o que a gente imaginava", disse. O petista contou que os aliados do governo montaram uma força-tarefa para convocar os parlamentares e garantir o quórum durante toda a sessão. 

O projeto de alteração da LDO desobriga o governo, que gastou mais do que arrecadou ao longo do ano, de realizar superavit primário (economia para o pagamento dos juros da dívida pública). Com isso, fica afastada a possibilidade de a presidente Dilma Rousseff ser acusada de desrespeito à Lei Orçamentária. 

O Ministério da Fazenda havia se comprometido a economizar R$ 99 bilhões, ou 1,9% do Produto Interno Bruto (PIB), mas estimativas de analista apontam para um deficit de até R$ 30 bilhões neste ano. O PLN nº 36 não estipula uma nova meta fiscal, mas amplia o limite dos descontos que podem ser considerados no cálculo do resultado. De R$ 67 bilhões, os abatimentos passam a um valor equivalente à totalidade das despesas com o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e com as desonerações tributárias, que, de janeiro a outubro, já chegaram a R$ 140 bilhões. Ou seja, mesmo se o setor público fechar 2014 com saldo negativo, o objetivo terá sido cumprido. 

O Executivo empenhou-se intensamente para eliminar a meta fiscal, com o objetivo de não prejudicar a governabilidade do próximo mandato de Dilma. Tanto que, por meio de um decreto publicado na última sexta-feira, a presidente aumentou em R$ 10,3 bilhões as verbas do Orçamento neste ano. E, num gesto interpretado como barganha, condicionou a liberação de R$ 444 milhões para emendas parlamentares à aprovação do PLN nº 36. A oposição entrou com recurso no Supremo Tribunal Federal (STF) contra a medida, que considera inconstitucional. 

Um dos maiores críticos da manobra fiscal do governo, o senador Aécio Neves (PSDB-MG) reiterou que Dilma cometeu crime contra a Lei de Responsabilidade Fiscal (LFR). "O PT votou contra essa lei", destacou. "Perdemos a eleição, mas não perdemos a condição de ser oposição deste governo, que vem cometendo irresponsabilidades atrás de irresponsabilidades", afirmou ele, lembrando que os brasileiros pagarão as consequências com a elevação dos juros, como foi feito ainda ontem pelo Banco Central. 

Aécio demonstrou indignação em relação ao decreto de condicionamento das emendas. "A presidente coloca de cócoras o Congresso Nacional ao estabelecer que cada um aqui tem um preço", bradou o tucano. "O governo institucionalizou a chantagem. Isso é uma vergonha." O senador, que é presidente do PSDB, se disse "estarrecido" com o que ocorreu nos últimos dias no Congresso. 

Riscos 
Para analistas, os atropelos para a aprovação do PLN nº 36 aumentam a desconfiança de investidores e abrem espaço para o rebaixamento da nota de crédito do país no início de 2015 pelas agências internacionais de risco, apesar do voto de confiança dado pelo mercado à nova equipe econômica de Dilma, comandada pelo economista Joaquim Levy, que assumirá o Ministério da Fazenda. 

"O governo está tentando resgatar a credibilidade perdida nos últimos anos ao indicar um ortodoxo como Joaquim Levy para a Fazenda, mas, do jeito que foi conduzido, esse processo abre uma preocupação não somente com esse fator, mas com diversos outros pontos importantes que o governo se propôs para o ano que vem", disse o economista-chefe da Austin Rating, Alex Agostini. "Qual investidor vai querer apostar num país em que a regra do jogo pode ser alterada a qualquer momento?", questionou. "A credibilidade do governo está mais arranhada do que nunca. Isso é inquestionável", pontuou. 

O relator do PLN nº 36, senador Romero Jucá (PMDB-RR), minimizou qualquer risco à credibilidade do país no mercado, e reforçou o parecer favorável à aprovação do projeto. "As contas precisam fechar porque é preciso sinalizar estabilidade econômica e política para o próximo ano. Acho que o governo aprendeu uma lição. Essa crise foi pedagógica e o Executivo já ajustou os números para o próximo ano, exatamente diminuindo o tamanho das metas que quer alcançar. Metas que seriam inatingíveis, como seriam esse ano também", afirmou. 

Perdemos a eleição, mas não perdemos a condição de ser oposição deste governo que vem cometendo irresponsabilidades atrás de irresponsabilidades" 
Aécio Neves, senador PSDB-MG 

Aprendizado da oposição

Para o cientista político Carlos Melo, professor do Insper, está havendo uma mudança interessante no cenário político e uma inversão dos papeis no Congresso. "A oposição está aprendendo a fazer oposição. Vai chegar em determinado momento em que vão arregaçar as mangas e por a mão na massa", explicou.Na terça-feira, o DEM ajuizou no Supremo Tribunal Federal (STF), uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) para suspender os efeitos do decreto da presidente Dilma Rousseff que condiciona a liberação de recursos de emendas parlamentares à aprovação da mudança na meta fiscal de 2014.

 

 

Manifestantes, lá fora

 

NAIRA TRINDADE

 

Um dia após as cenas de vaias e pancadaria vistas na noite de terça-feira nas galerias do plenário da Câmara, o Congresso virou uma caixa-forte. Todas as entradas fechadas para os cidadãos comuns. Quem não era servidor ou não tinha credencial para ingressar no prédio ficou de fora. Com isso, o tumulto se repetiu na chapelaria do Senado e da Câmara, incluindo personagens conhecidos, enquanto o presidente do parlamento, o senador Renan Calheiros (PMDB-AL), tentava acelerar a votação dos dois vetos presidenciais que trancavam a pauta para, finalmente, aprovar o projeto de lei que muda a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e elimina a meta fiscal do governo para este ano.

Parlamentares da oposição criticaram a permanência das galerias vazias. Um dos mais indignados foi o deputado Ronaldo Caiado (DEM-GO): "agora, quando é para apagar as digitais da presidente de um crime, fecharam as portas. Baixou o espírito de Hugo Chávez na presidente". "Esse Congresso não é venezuelano", gritou. Do lado de fora, um dos mais afoitos entre os manifestantes era o cantor Lobão. Ele havia se encontrado com oposicionistas, recusou-se a acompanhar a sessão sozinho nas galerias e fez um apelo para que as pessoas protestassem.

"Quem não puder vir (ao Congresso), telefone para seu parlamentar, vá para a internet, faça todo o barulho possível, espalhe, não permita que isso ocorra", disse Lobão. "É uma ditadura. Estamos levando um golpe e não vamos permitir isso", emendou. Logo depois, o senador Aécio Neves (PSDB-MG), candidato derrotado à Presidência, era ovacionado pelos presentes ao chegar ao local. O senador José Sarney (PMDB-AP), contudo, sofreu um constrangimento ao sair desavisado. Ele foi hostilizado pelo grupo, que cercou o carro dele, quase impedindo o de deixar a Casa.

Aprendizado

A barganha institucionalizada pelo decreto (8.367/2014) da presidente Dilma Rousseff, que condiciona a liberação de R$ 10,3 bilhões em emendas parlamentares à aprovação do PLN nº 36 gerou indignação entre parlamentares. Depois de o senador Pedro Simon (PMDB-RS) protocolar anteontem projeto de decreto legislativo para anular a medida, o PSol protocolou ontem projeto semelhante na Câmara (PDC).

O líder do partido, deputado Ivan Valente (SP), solicitou aos parlamentares que assinassem requerimento de urgência ao PDC, argumentando que o decreto é inconstitucional. "Não é admissível a coação de parlamentares", disse.

 

Maquiagem oficializada

 

CELIA PERRONE

O projeto de lei (PLN) nº 36, que altera a meta fiscal do governo em 2014, recebeu duras críticas da oposição e de especialistas. O texto anula os termos da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), ao desobrigar Dilma Rousseff de honrar o superavit primário, a economia para pagar juros da dívida pública, sem comprometer seu segundo mandato. "Com esse projeto, o governo está pedindo ao Congresso permissão para ter deficit primário e o chamar de superavit", resumiu o economista especialista em conta públicas, Mansueto Almeida.

O relatório do PLN nº 36, de autoria do senador Romero Jucá, (PMDB-RR) ainda exclui a palavra "superavit" e a substitui por "resultado", que, pela interpretação de qualquer leigo, pode ser positivo ou negativo. De janeiro a outubro, o rombo das contas públicas somou R$ 11,6 bilhões, bem distante dos R$ 99 bilhões que o governo havia se comprometido ao longo do ano. Isso apesar de, na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), o compromisso de economizar R$ 167 bilhões, sendo R$ 67 bilhões gastos com o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e desonerações de tributos. Esses dois itens, em 10 meses do ano, chegaram a quase R$ 140 bilhões.

Para Almeida, o ideal seria o Executivo melhorar a comunicação com o mercado e dar sinalização clara do que faria para aprovar a recuperação do primário ao longo dos próximos três ou quatro anos. "O governo não vai poder fazer mágica. A única forma de termos recuperação rápida é por meio de forte aumento da carga tributária, algo que ninguém quer", defendeu.

O economista Felipe Salto, da Consultoria Tendências, compartilha da mesma opinião e mostra preocupação com 2015. Para ele, mesmo se o governo entregar um resultado negativo neste ano, o mercado está mais atento para a eficácia do plano de recuperação do superavit primário no ano que vem. "O governo deveria revelar a estratégia que vai adotar para recuperar a dívida do setor público e não ter levado adiante essa luta inglória no Congresso", afirmou. Ele acredita que o projeto é só "mera formalidade para legalizar o desrespeito à meta."