Mariel é uma cidade cubana em dificuldades. Ela tem uma usina elétrica em ruínas e uma fábrica de concreto enferrujada, e fica numa baía de águas profundas voltada para o norte, a 90 milhas dos EUA - o velho inimigo de Cuba, mas com o potencial de se tornar seu maior parceiro comercial.

Em 1980, Mariel foi o local de onde partiu um êxodo em massa de refugiados para os EUA. Hoje, é mais conhecida por sua zona de livre comércio de US$ 800 milhões e um ponto de contêineres inaugurado no ano passado [obra financiada pelo Brasil] - enquanto Washington se encontrava em meio a negociações secretas com Havana. Estas culminaram no anúncio histórico desta semana de que os EUA vão relaxar as antigas sanções comerciais contra a ilha.

"As coisas vão mudar muito por aqui", diz Pedro Cordero, operador de máquina, pensando no futuro de Mariel e nas perspectivas oferecidas pelas relações comerciais com os EUA. "Logo teremos muita gente aqui: brasileiros, chineses, panamenhos... e americanos."

Assim como ele, os cubanos reagiram com esperança e até euforia ao anúncio do presidente Barack Obama, de que os EUA estão discutindo o restabelecimento das relações diplomáticas bilaterais e de laços comerciais, após um congelamento que durou meio século.

"É uma maravilha, maravilha, maravilha. Todos estão emocionados, felizes, entusiasmados!", diz Anaida Gonzales, uma enfermeira da capital de província Camagüey.

A decisão de Obama, após 18 meses de negociações secretas, não encerra o embargo imposto pelos EUA, que exige a aprovação do Congresso. Ainda assim, a decisão de Havana de aplicar escassos recursos no moderno terminal de contêineres de Mariel - e construir novas marinas e campos de golfe em outras partes da ilha - sugere que o presidente Raúl Castro decidiu fazer um grande esforço para normalizar as relações comerciais entre os dois países.

A necessidade de impulso econômico aumentou depois que as reformas econômicas limitadas de Raúl, que incluem a liberalização das pequenas empresas e a permissão do surgimento de algumas cooperativas, falharam em colocar em marcha a atrasada economia cubana, de estilo soviético.

A crise econômica na Venezuela, maior benfeitora de Cuba, contribuiu para o problema. Caracas tem dificuldade para manter os milhões de dólares em petróleo subsidiado que envia para Havana.

A melhoria nas relações comerciais EUA-Cuba "envia um sinal muito forte à comunidade internacional sobre o futuro da economia cubana e também sobre a lucratividade dos investimentos, especialmente com o mercado dos EUA tão perto", diz Pavel Vidal, uma ex-autoridade do banco central cubano que hoje dá aulas na Javeriana University de Cali, na Colômbia. "Se os investimentos aumentarem, o crescimento poderá ser de 5% ou 6% ao ano."

Ele acredita que o maior estímulo de curto prazo virá dos cubanos-americanos, que sob as novas regras poderão enviar US$ 2.000 a cada três meses a seus parentes na ilha - quatro vezes o limite atual.

A possível remoção de Cuba da lista americana de patrocinadores do terrorismo também desencadeará o fim de algumas sanções financeiras que inibem os investimentos estrangeiros e o comércio.

Diplomatas acreditam que Washington e Havana esperam ver suas relações totalmente restauradas no momento em que Obama deixar a Presidência, em 2017, ou até 2018, quando Castro, segundo anunciou, deixará seu posto. Entretanto, eles estão cautelosos sobre as perspectivas da aprovação do Congresso americano, necessária para por fim ao embargo imposto pelos EUA, e sobre a velocidade das mudanças em Cuba.

Por um lado, os elementos mais complicados do programa de reforma econômica de Castro ainda não foram postos em prática - a unificação uma miríade de taxas de câmbio cubanas e a concessão de total autonomia às empresas estatais. E, apesar da revisão, em julho, da legislação que regulamenta investimentos estrangeiros, numa tentativa de atrair empresários do exterior, Cuba não anunciou um único novo acordo sequer.

A experiência passada sugere que Havana provavelmente avançará lentamente, enquanto equilibra a necessidade de uma reforma de política econômica contra os riscos da liberalização. "A agenda no outro lado do estreito da Flórida conhecemos em detalhes, mas deste lado continua oculta e secreta", escreveu Yoani Sanchez, uma blogueira dissidente em Havana.

Apesar do sentimento generalizado de esperança, alguns cubanos expressaram preocupações, temendo que a reaproximação possa provocar uma onda de emigração de cubanos que buscariam aproveitar as regras atuais que facilitam obter a cidadania americana, e que podem mudar no futuro. Alexis Fernandez, um guia turístico local, disse temer que nos próximos meses as pessoas possam "se apressar em botar os pés nos EUA".

Apesar disso, o clima geral em Cuba é de efervescência. Pequenos empresários estão animados com a perspectiva da vinda de mais turistas americanos, e outros esperam que suas dificuldades quotidianas possam ter fim. "Todo mundo está sorrindo. Algumas pessoas estão chorando", disse o cubano Ileleny Santiesteban. "Isso é maravilhoso. Tudo ficará mais fácil para todos, no futuro, tanto aqui como lá. Talvez finalmente tenha chegado ao fim".

 

Obama acredita que pode vencer lobby anticastrista

 

Com seu anúncio de que os EUA abrirão negociações e tentarão normalizar as relações com Cuba, o presidente Barack Obama está tentando quebrar a influência do lobby de Cuba de uma vez por todas. Em termos históricos, esse é um empreendimento notável.

Por décadas a política americana para Cuba foi orientada pelo lobby inteligente e eficiente de um grupo relativamente pequeno de cubano-americanos altamente interessados, principalmente em Miami. O sucesso do lobby de Cuba refletiu uma verdade profunda da política americana: onde há um interesse concentrado de um dos lados de uma questão, e um interesse apenas difuso do outro, o interesse concentrado ganha.

Isso vai funcionar? Se funcionar, por que agora? E quais são as implicações para outros grupos de lobby concentrados, como a National Rifle Association (NRA) e o lobby pró-Israel, que tiveram sucesso com versões da abordagem inaugurada pelo lobby de Cuba?

Comecemos com um fato incontestável: a abertura de Obama para o regime de Raúl Castro é exatamente o que o lobby de Cuba há muito teme e combate. Suas principais vozes no Senado, a do democrata Robert Menendez e a do republicano Marco Rubio, condenaram sem demora a aparente troca, por Obama, de três agentes de inteligência cubanos pelo americano Alan Gross e outro americano não identificado, detidos sob acusação de espionagem em Cuba.

Rubio disse que Obama fazia o jogo dos irmãos Castro, "ao dar o impulso econômico que o regime precisa para se tornar permanentemente patrimônio intocável de Cuba por várias gerações".

Desde o fim da Guerra Fria, especialistas independentes em política externa argumentam que é do interesse dos EUA abrir relações com Cuba. Uma vez que o comunismo não precisava mais ser contido ou combatido em escala mundial, prosseguia o argumento, os EUA ganhariam no comércio com Cuba. De fato, a injeção de capital e de turismo em Cuba que se instauraria com o fim das sanções americanas enfraqueceria ainda mais o socialismo que subsiste na ilha.

Mas, apesar do amplo consenso em círculos de política externa, a política americana até agora não mudou para valer - e o motivo foi a eficiência do lobby anti-Castro. Essa eficiência não é explicada pela existência de um grande número de cubano-americanos: há cerca de 2 milhões, dos quais cerca de 70% moram na Flórida. E não são todos os cubano-americanos que apoiam uma forte política de não envolvimento com a ilha.

O motivo do sucesso do lobby foi a disciplina com a qual o grupo de pressão implementou sua agenda. Um punhado de políticos recebe amplo apoio do lobby, e seus pontos de vista, não por acaso, têm estreita correspondência com os dos cubano-americanos que os apoiam. O ponto fundamental da operação é que do outro lado não existe nenhum grupo de interesse concentrado defendendo a normalização das relações com Cuba.

Que esse modelo de militância soe familiar não é de estranhar. A mesma estrutura básica explica o sucesso da NRA e do lobby pró-Israel exemplificado pela Comissão Americana de Assuntos Públicos de Israel (Aipac).

Os que apoiam o direito ao porte de armas dão profunda importância à questão: eles são a essência de um lobby concentrado. Os que se empenhariam em regulamentar o uso de armas são quase por definição mais difusos. Podem ficar motivados após um episódio como o massacre de Newtown, Connecticut, que matou 27 pessoas, mas, com o passar do tempo, os interesses difusos voltam ao seu natural estado de dispersão.

O lobby pró-Israel tem êxito não primordialmente devido à sua capacidade financeira ou à sua desproporcional influência cultural, e sim porque não existe qualquer lobby concentrado pró-palestino de qualquer dimensão considerável nos EUA. Pesquisas de opinião sugerem que muitos americanos apoiam a ideia de imparcialidade entre israelenses e palestinos. Mas qualquer impulso desse tipo é altamente difuso, enquanto o pequeno número de judeus americanos que prestam a maior atenção à promoção dos interesses de Israel, tal como eles os veem, são altamente focados e concentrados.

Por que Obama acha que pode vencer o lobby de Cuba agora? A configuração política fortuita do momento oferece a melhor explicação. Sua ação executiva na reforma da imigração deu ao presidente - e provavelmente ao Partido Democrata - um grande impulso entre os latinos. Ele não disputará a reeleição e os democratas da Câmara dos Deputados estarão vulneráveis por mais dois anos. Quanto a Hillary Clinton, se ela enfrentar Jeb Bush na campanha presidencial de 2016, provavelmente terá de encontrar um caminho para a vitória que não envolva ganhar a Flórida, o Estado natal de Bush.

Tudo isso libera Obama e os democratas para tentar fazer alguma coisa com relação ao lobby de Cuba. Mas o jogo não estará terminado com a abertura de negociações, que o presidente pode fazer por conta própria. Restabelecer relações diplomáticas plenas e pôr fim ao embargo exigirá a aprovação do Congresso. Nesse caso, pode se esperar o lobby em pé de guerra - e com alguma chance de sucesso.

O que Obama deve ter esperança que aconteça é que os grupos dotados de um interesse passageiro na abertura para Cuba embarquem nesse trem da alegria pelo tempo suficiente para contrabalançar o poder do lobby e conseguir que a legislação necessária seja aprovada.

O risco para Obama de enfrentar um lobby concentrado não lhe é totalmente desconhecido. Afinal, ele tentou confrontar a NRA ao pressionar pela aprovação do controle de armas após o massacre de Newtown. Ao perder, o custo político para ele foi muito menor do que o custo de não fazer nada.

Com relação a Israel, Obama atuou com muito mais cuidado, limitando-se ao recado inequívoco de que ele acha que os assentamentos da Cisjordânia são um obstáculo à paz e que Binyamin Netanyahu também é. Muitos grupos de lobby pró-Israel o odeiam por isso, mas ainda não tiveram a oportunidade de abrir guerra contra ele. Obama tem de assumir riscos se quiser marcar alguns pontos em seu legado. Sua aposta em Cuba pode não se concretizar plenamente. Mas seus resultados terão implicações sobre a estrutura da política americana de grupos de interesse de modo geral.

 

 

GOVERNO BRASILEIRO VÊ “VITÓRIA DA ESQUERDA”

 

O assessor internacional Marco Aurélio Garcia afirmou ontem que a reaproximação entre Cuba e EUA é “uma vitória da esquerda” e cobrou o fim do embargo econômico americano à ilha caribenha “de forma tão civilizada” quanto o reatamento dos laços diplomáticos.

Garcia disse, em rápida conversa com o Valor, que a decisão foi “ótima” e “muda o quadro” das relações bilaterais. “Agora, eles têm que resolver o problema do embargo. Esse é um problema que o Congresso americano tem que resolver. Espero que resolva de forma tão civilizada quanto o presidente Barack Obama resolveu.”

Para o assessor, não há prazo definido para mais avanços. Ele fez questão de elogiar Obama. “Foi uma decisão corajosa, realista, de alguém que está comprometido com sua própria biografia.”. E rebateu a observação de que o governo brasileiro não teve participação ativa no reatamento. “O Brasil fica muito bem porque estamos há anos lutando por isso e fizemos inclusive, em um marco de uma diplomacia discreta, muitos esforços nessa direção. Mas isso daqui a alguns anos vai se saber.”

Criticada por oposicionistas na última campanha presidencial, a construção do Porto de Mariel foi citada por petistas como a “ponta de lança” para os negócios futuros das empresas brasileiras em Cuba. Líder do PT no Congresso, o senador Humberto Costa (PE) destacou o “imenso potencial” para investimentos em infraestrutura na ilha e disse que o fato de já ter feito um empreendimento naquele país dá ao Brasil uma vantagem inicial.

Na mesma linha, a ex-ministra da Casa Civil Gleisi Hoffmann disse que o país será um dos mais beneficiados pelo processo de abertura em Cuba, tanto em investimentos quanto em comércio. “O Brasil sempre apostou que o embargo ia acabar e que havia ali grandes oportunidades de investimentos. Certamente vamos colher frutos.”

Do ponto de vista político, o líder do governo disse que a abertura de diálogo entre Cuba e os EUA “é a notícia mais importante das duas primeiras décadas do século XXI”. “Nada retratava de forma mais cristalina a irracionalidade da Guerra Fria”, disse Costa. Na sua avaliação, a distensão das relações entre Havana e Washington pode se refletir num clima mais ameno com outros países latino-americanos, especialmente a Venezuela.

Para o senador, o governo brasileiro sempre manteve boas relações com Cuba, mas foi o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva quem aprofundou as parcerias com a ilha. No site de seu instituto, Lula disse que “o povo brasileiro sempre sonhou e trabalhou por esse momento”. Alertou, porém, para as resistências já demonstradas por parlamentares americanos.

“Esperamos, agora, que o Congresso americano dê sequência à iniciativa do presidente Barack Obama, pondo fim ao bloqueio injustificável que continua impedindo o pleno desenvolvimento da nação cubana”, disse Lula.

O ministro das Relações Exteriores, Luiz Alberto Figueiredo, não quis se pronunciar. Ainda não confirmado no cargo e enfrentando especulações sobre sua saída, ele preferiu manter a discrição. Em nota oficial, o Itamaraty disse ter recebido “com grande satisfação” o anúncio, que elimina um “resquício da Guerra Fria”. “Felicitamos os presidentes Raúl Castro e Barack Obama pela liderança, coragem política e visão estratégica que demonstraram com essa histórica decisão, que esperamos seja acompanhada do pronto levantamento do embargo”, diz a nota.