O Estado de São Paulo, n. 44502, 21/08/2015. Política, p. A4

Em denúncia contra Cunha, procurador pede a devolução de US$ 80 milhões

 

O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, encaminhou ontem ao Supremo Tribunal Federal denúncia contra o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), e a ex-deputada federal Solange Almeida (PMDB-RJ) por envolvimento no esquema de corrupção e desvios na Petrobrás investigado pela Operação Lava Jato.

Janot pediu ao STF a condenação de Cunha pelos crimes de lavagem de dinheiro e corrupção passiva e de Solange por corrupção passiva. Ele solicitou também a devolução de US$ 80 milhões (equivalente a R$ 277 milhões) divididos em US$ 40 milhões de restituição pelo que foi recebido com a prática dos crimes e US$ 40 milhões referentes aos danos à Petrobrás e à administração pública.

A denúncia tem como principal alicerce as delações premiadas do lobista Júlio Camargo e do doleiro Alberto Youssef, além outros indícios colhidos pela força-tarefa da Lava Jato, com o movimentações financeiras.

Cunha é acusado pelo procurador de ter recebido propina de ao menos US$5 milhões para viabilizar a construção de dois navios sonda da Petrobrás, no período de junho de 2006 a outubro de 2012.Além de Cunha, a ex-deputada Solange Almeida também foi denunciada por pressionar o pagamento de valores retidos por empresas investigadas na Lava Jato.

Segundo a denúncia, dentro do esquema ilícito, Cunha recebeu "vantagens indevidas" para facilitar a contratação do estaleiro Samsung Heavy Industries, responsável pela construção dos navios sonda Petrobrás 10000 e Vitória 10000, sem licitação, por meio de contratos firmados em 2006 e 2007.

O procurador afirma que,para dar aparência lícita à movimentação das propinas acertadas, foram celebrados dois contratos de comissionamento entre a Samsung e a empresa Piemonte, de Camargo. Dessas comissões saíram as propinas prometidas a Fernando "Baiano" Soares, apontado como operador do PMDB no esquema, Cunha e ao então diretor de Internacional da Petrobrás, Nestor Cerveró.

Parcelas. Por causa dos contratos, a Samsung Heavy lndustries transferiu, em cinco parcelas pagas no exterior, a quantia total de US$ 40,355 milhões para Júlio Camargo, que, em seguida, transferiu a partir da conta mantida em nome da offshore Piemonte, no Uruguai parte destes valores para contas bancárias também no exterior, indicadas por Fernando Baiano, aponta a denúncia.

Cunha é acusado de lavagem de dinheiro por ocultar e dissimular o recebimento dos valores no exterior em contas de empresas offshore e por meio de empresas de fachada.

Segundo a Procuradoria, as investigações demonstraram que, a partir de determinado momento, após o recebimento das sondas, a Samsung deixou de pagar as comissões para Júlio Camargo, inviabilizando o repasse da propina aos destinatários. Com isso, diz a denúncia, o presidente da Câmara "passou a pressionar o retorno do pagamento das propinas, valendo-se de dois requerimentos perante a Comissão de Fiscalização Financeira e Controle da Câmara, formulados pela então deputada Solange Almeida, em julho de 2011".

Os requerimentos solicitavam informações sobre Júlio Camargo, Samsung e o Grupo Mitsui, envolvido nas negociações do primeiro contrato, aponta a Procuradoria. Um deles foi dirigido ao Tribunal de Contas da União e outro ao Ministério de Minas e Energia.

Segundo Janot, a ex-deputada tinha ciência de que os requerimentos seriam formulados com desvio de finalidade e abuso da prerrogativa de fiscalização inerente ao mandato. Para ele, não há dúvidas de que "o verdadeiro autor dos requerimentos, material e intelectual, foi Eduardo Cunha".

Conforme as investigações, Cunha elaborou os requerimentos, logado no sistema da Câmara como o usuário "dep. Eduardo Cunha", utilizando senha pessoal e intransferível, e os arquivos receberam os metadados do usuário logado no momento de sua criação. Depois, os requerimentos foram autenticados pelo gabinete de Solange, sendo que ela não era integrante ou suplente da Comissão de Fiscalização e não havia apresentado nenhum outro requerimento naquele ano.

Na denúncia, Janot informa que, em razão da pressão exercida, os pagamentos foram retomados, por volta de 2011, após reunião pessoal entre Baiano, Camargo e Cunha. O valor restante foi pago por meio de remessas no exterior, entregas em dinheiro, simulação de contratos de consultoria, com emissão de notas frias, e transferências para igreja vinculada a Cunha, sob a falsa alegação de que se tratava de doações religiosas. A Procuradoria afirma que Camargo foi procurado por Baiano e indicou que ele "deveria realizar o pagamento de valores à Igreja Evangélica Assembleia de Deus" - o nome da igreja no registro da Receita corresponde à Igreja Evangélica Assembleia de Deus Ministério Madureira, em Campinas (SP).

Para a Procuradoria, Cunha era "sócio oculto" de Baiano e também foi o destinatário final da propina. "Tendo efetivamente recebido ao menos US$ 5 milhões."

O oferecimento de denúncia consiste em uma acusação formal feita pelo Ministério Público após a conclusão de que já há indícios de provas suficientes para que os denunciados respondam a uma ação penal. Cunha e os outros políticos só se tornam réus se o Supremo aceitar a acusação. No caso de Cunha, a decisão sobre a abertura da ação penal deve ser tomada pelo plenário da Corte,que analisa investigações criminais de presidentes das Casas Legislativas. / Beatriz BULLA, TALITA FERNANDES, FAUSTO MACEDO, JULIA AFFONSO, RICARDO BRANDT e ANDREZA MATAIS

Texto cita Gandhi e não traz pedido de afastamento

• Embora até os advogados de Eduardo Cunha esperassem um pedido de afastamento dele da presidência da Câmara, Rodrigo Janot não fez qualquer menção ao tema. Investigadores da Lava Jato não descartam, contudo, um pedido em outro momento -por exemplo, se o deputado real mente passar a responder a uma ação penal no Supremo.

O afastamento, segundo juristas, seria justificado se ficar comprovado que o presidente da Câmara usou o cargo a seu favor de forma irregular. Esse processo pode ter início na própria Câmara ou via Judiciário.

A denúncia oferecida ontem pelo procurador-geral cita o líder indiano Mahatma Gandhi: "Quando eu me desespero, eu me lembro que, durante toda a história, os caminhos da verdade e do amor sempre ganharam. Têm existido tiranos e assassinos e, por um tempo, eles parecem invencíveis, mas no final sempre caem. Pense nisto: sempre", diz o trecho do texto de Gandhi reproduzido na peça.

A citação faz parte do livro Uma Autobiografia, Minha Vida e Minhas Experiências com a Verdade (An Autobiography: The Story of My Experiments with Truth, no título original). Na obra, Gandhi relata sua trajetória desde a infância até 1921, quando tinha 52 anos.