O Papa no Capitólio

 

O globo, n. 29999, 25//09/2015. Sociedade, p. 25

 

Na primeira visita de um Pontífice ao Congresso americano, o Papa Francisco fez, na manhã de ontem, um discurso contundente instando os legisladores da nação mais poderosa do mundo a abandonar a polarização e se unir na luta para curar “feridas abertas” na sociedade. Após ser recebido por uma multidão do lado de fora do Capitólio, o líder da Igreja Católica se reuniu com o republicano John Boehner, presidente da Câmara dos Representantes, antes de discursar sobre temas sensíveis aos EUA, em especial pela defesa da imigração e críticas ao comércio internacional de armas e à pena de morte.

AFP/ DAVID GOLDMANSelfie sagrada. O Papa Francisco se aproximou dos fiéis para tirar fotos durante almoço oferecido a pessoas sem- teto em Washington

— A política é uma expressão da nossa necessidade de viver como um, a fim de construir um bem maior comum: de uma comunidade que sacrifica seus interesses particulares para compartilhar, de forma justa e pacífica, seus bens, interesses e vida social — disse o Papa. — Eu não subestimo a dificuldade que isso envolve, mas os encorajo nesse esforço.

Hoje, Francisco participa da 70 ª Assembleia Geral da ONU, com chefes de Estado e Governo ou representantes dos 193 países- membros das Nações Unidas. A expectativa é que o meio ambiente e as mudanças climáticas estejam no centro dos debates.

Diante dos congressistas, Francisco destacou que o mundo enfrenta uma crise de refugiados de “magnitude não vista desde a Segunda Guerra Mundial”, e aproveitou para defender os imigrantes que vivem nos EUA, lembrando que os povos do continente não devem temer os estrangeiros, “porque a maioria de nós foi estrangeiro um dia”.

— Eu digo isso como um filho de imigrante, sabendo que muitos de vocês também são descendentes de imigrantes — disse Francisco. — Nós não devemos nos surpreender pelo número, mas vê- los como pessoas, olhando para os seus rostos e ouvindo suas histórias, procurando responder da melhor forma que pudermos à situação deles.

Logo em seguida, o Pontífice fez uma leve crítica ao aborto, prática legalizada nos EUA desde a década de 1970, mas que se tornou alvo recente de setores conservadores e legislações estaduais, que tentam limitar o acesso de mulheres ao procedimento.

— Se queremos segurança, vamos dar segurança; se queremos vida, vamos dar vida; se queremos oportunidades, vamos oferecer oportunidades — afirmou. — A Regra de Ouro nos lembra da responsabilidade de proteger e defender a vida humana em todas as fases do seu desenvolvimento.

Dando continuidade ao raciocínio, Francisco pediu a “abolição global da pena de morte”, que ainda é exercida em 31 dos 50 estados americanos.

— Estou convencido que este é o melhor caminho, pois toda vida é sagrada, todo ser humano é dotado de dignidade inalienável, e a sociedade pode se beneficiar da reabilitação daqueles condenados por crimes — disse o Papa.

Faltando pouco mais de um ano para a eleição presidencial americana, tanto democratas como republicanos tiveram suas agendas contempladas. A menção ao casamento homoafetivo, legalizado pela Suprema Corte americana em junho último, foi feita indiretamente ao fim do discurso, quando Francisco falava sobre a importância da família.

— Eu não posso esconder a minha preocupação com a família, que talvez esteja ameaçada como nunca antes, tanto de dentro como de fora — disse o Pontífice. — Relacionamentos fundamentais estão sendo colocados em questão, assim como as bases do casamento e da família. Eu apenas posso reiterar a importância e, sobretudo, a riqueza e a beleza da vida familiar.

Por outro lado, a crítica à indústria de armamentos foi bastante clara:

— Por que armas mortais estão sendo vendidas para aqueles que planejam infligir sofrimento incalculável contra indivíduos e sociedade? — questionou. — Infelizmente, a resposta, como todos sabemos, é simplesmente o dinheiro. Dinheiro que está encharcado de sangue, muitas vezes o sangue inocente. Diante deste silêncio vergonhoso e culpado, é nosso dever confrontar o problema e parar com o comércio de armas — disse.

ALMOÇO COM SEM- TETO

Após o discurso para os congressistas, o Papa Francisco deixou o Capitólio para participar de um almoço com pessoas sem- teto na Igreja de Saint Patrick, na região central da capital americana. Diante de 300 convidados, todos moradores de rua e voluntários de instituições de caridade, o líder religioso falou rapidamente, abençoando a refeição e pedindo justiça social. No cardápio, frango teriyaki, salada de macarrão asiático e feijão verde.

— Nós não podemos encontrar justificativas sociais ou morais, justificativas quaisquer, para a falta de moradia — disse o Papa, em espanhol.

No fim da tarde, Francisco viajou de Washington para Nova York, onde rezou uma oração na Catedral de Saint Patrick. A cidade preparou um esquema de segurança especial, com o fechamento de vias para a passagem do papamóvel. Na Quinta Avenida, uma multidão se espremeu para ver o líder religioso, mas alguns grupos prepararam cartazes de protesto contra o Papa e a Igreja Católica.

No lado de dentro da catedral, convidados ouviram Francisco lamentar a morte de peregrinos muçulmanos durante o Hajj, em Meca, e agradecer pelo trabalho de freiras e padres, que “sofreram em um passado não muito distante, por terem que suportar a vergonha provocada por alguns irmãos”.