Papa pede em missa em Cuba que se ‘supere resistência à mudança’

 

O globo, n. 29996, 22//09/2015. Economia, p. 27

 

Em missa na terra natal dos Castro, em Cuba, o Papa Francisco pediu que se “supere a resistência à mudança”. O Vaticano não quis comentar prisões de dissidentes. - HOLGUÍN, CUBA- Principal mediador da aproximação entre Cuba e os Estados Unidos, o Papa Francisco não fez, desde que desembarcou em Havana no sábado, nenhuma crítica aberta ao regime castrista. Por outro lado, tem procurado através de alusões indiretas e da escolha dos temas das homilias deixar uma mensagem ressonante contra os controles e restrições governamentais às liberdades civis e políticas. Ontem, na segunda missa ao ar livre — em Holguín, no Leste da ilha, província natal dos irmãos Castro — ele pediu que “se supere as resistências à mudança”. Isso após ter dito domingo, em Havana, que “servir nunca é ideológico” e que se deve “servir a pessoas”. Francisco, no entanto não emitiu uma palavra sobre detenções de dissidentes, que já chegariam a cerca de cem desde sua chegada a Cuba no sábado, segundo grupos de direitos humanos locais.

TONY GENTILE/ APDiscrição. Francisco e recebido pelo presidente cubano, Raúl Castro ( de chapéu): nenhuma palavra sobre prisão de opositores

Em Holguín, o Pontífice pregou para uma multidão de dezenas de milhares de cubanos. O presidente Raúl Castro estava entre os ouvintes.

— Jesus nos convida a ir lentamente superando nossos preconceitos, nossas resistências à mudança dos demais e inclusive de nós mesmos. Jesus gera uma atividade missionária, de serviço, de entrega. Seu amor nos estimula a olhar mais além, a não ficarmos nas aparências ou no politicamente correto — disse o Pontífice, criticando ainda o que chamou de “uso” das pessoas.

TRÊS PRESOS ANTES DA SEGUNDA MISSA

Assim como ocorreu em Havana, três opositores foram detidos em Holguín antes da chegada de Francisco para evitar que se aproximassem do Papa, segundo informou José Ferrer, secretário- geral da União Patriótica de Cuba, organização que aglutina vários grupos dissidentes na ilha. Ontem, Berta Soler, presidente das Damas de Branco, denunciou que 23 mulheres que tinham previsto participar da missa em Havana também foram presas.

No domingo, apesar do forte aparato de segurança, com centenas de agentes uniformizados e à paisana, um homem conseguiu se agarrar ao papamóvel. Um vídeo mostra que Francisco chegou a tocar a cabeça do rapaz, segundos antes de ser agarrado e detido. Ferrer o identificou como Zaqueo Báez Guerrero, de 34 años, morador de Havana e um dos membros da União Patriótica. Segundo Ferrer, Guerrero o telefonou do centro de detenção para onde foi levado e contou que disse ao Papa que “isto é uma ditadura que reprime o povo e oprime os opositores”.

Funcionários do Vaticano não comentaram os incidentes de domingo e se limitaram a dizer que alguns membros da oposição foram convidados por telefone a assistir alguns dos eventos do Papa, mas que não estava planejada nenhuma reunião privada.

— Me sinto muito satisfeita com o reconhecimento que significa o fato de nos terem convidado a estas atividades — disse Marta Beatriz Roque, uma das dissidentes que foi detida quando tentava chegar no domingo a uma dos eventos do Pontífice.

O governo em Havana não fez comentários sobre as detenções e assegura que não existem presos políticos, além de afirmar que “os dissidentes são mercenários a serviço dos Estados Unidos”.

— Em Holguín e Santiago de Cuba ( parada final do Papa, hoje), nossos ativistas têm a mesma intenção que em Havana: aproximar- se do Papa e chamar a atenção para as detenções arbitrárias. E também porque consideramos demasiado tíbio o comportamento do Vaticano em Cuba — afirmou Ferrer.

Apesar das denúncias de prisões, Francisco não se manifestou publicamente sobre o assunto desde que chegou a Cuba. Por sua vez, o porta- voz do Vaticano, Federico Lombardi, viu- se numa saia justa quando um dos jornalistas que acompanham a comitiva papal perguntou a ele se o “Papa sabe que mais de 50 ativistas foram detidos estes dias para evitar que se aproximassem?”

— Nada mais tenho a dizer sobre isso — respondeu Lombardi, visivelmente incomodado.

Entretanto, as detenções informadas pelos grupos opositores fizeram com que Lombardi dissesse que “sim, houve uma operação fracassada para que opositoras saudassem de passagem” a Francisco.

Ontem, após a missa campal em Holguín, o porta- voz disse que os discursos do Papa “têm muitas dimensões” e que “Francisco não costuma fazer referências políticas, e fala mais das conversões pessoais e do bem comum”.

— Elas ( outras Damas de Branco) vão tentar ir à missa em Santiago, mas é muito difícil — afirmou Berta Soler, assegurando que as opositoras iriam continuar insistindo em ver o Pontífice.

 

‘O governo só expõe sua fraqueza’

 

CAROLINA JARDIM

 

O que a polícia alegou para detêla?

Disseram que eu não podia participar de nenhuma atividade do Papa. Como a visita estava sendo transmitida ao vivo, acho que as autoridades não queriam que eu aparecesse na TV recebendo a bênção de Francisco.

Estava a caminho do evento quando foi abordada?

Fui detida nas minhas duas tentativas de ver o Papa. Na primeira, estava indo para a Embaixada do Vaticano. A menos de 20m do meu prédio, me abordaram e me levaram para uma delegacia, onde fiquei por quatro horas. No domingo, estava num táxi a caminho da Praça da Catedral quando me interceptaram novamente. Fiquei duas horas em outra delegacia.

Sofreu algum tipo de violência?

Não, eles agiram corretamente. Mas é um absurdo! É uma prática de um governo repressivo e totalitário que só expõe sua fraqueza.

Já havia sido detida antes?

Sou vigiada há mais de 20 anos, desde que entrei para a oposição. A polícia chegou a abrir um escritório num apartamento em cima do meu nos anos 1990. Mas é a primeira vez que me levam à delegacia.

Como avalia a decisão do Papa de não incluir na agenda um encontro com os dissidentes?

O Papa Francisco é muito inteligente. Ele busca abrir a nossa sociedade e ajudar os cubanos, tentando fazer isso de uma forma possível. Recebi um convite da Embaixada da Santa Sé em Cuba para participar dos eventos. Estou convencida de que essa foi uma tentativa do Papa. Ele tentou facilitar, mas não conseguiu.