O globo, n.30.016, 12/10/2015. , p.12

Não à impunidade

 

A prisão após condenação em segunda instância não fere a presunção de inocência e agiliza a Justiça

Osistema judiciário do país produz uma distorção: ou prende por atacado, muitas vezes com um rigor que poderia dar lugar à aplicação de penas alternativas — até mesmo para enfrentar o terrível drama da superpopulação carcerária —, ou, leniente, deixa de recolher à prisão quem, pela gravidade do crime cometido, deveria de fato ser punido com a privação da liberdade.

No primeiro caso, são incontáveis os exemplos de autores de crimes de menor impacto na sociedade, réus sem contumácia criminal, levados a cumprir penas em presídios ao lado de criminosos de alta periculosidade — quase um desvirtuamento do princípio penitenciário correcional. Já o segundo caso alimenta a impunidade, graças a um sistema que, abrindo brechas para intermináveis recursos e outras chicanas que saem do arsenal de bons ( e caros) advogados, se torna na prática um anteparo contra a punição, quando nada, um instrumento para adiar, muitas vezes até o limite da prescrição, o cumprimento efetivo de penas de prisão.

Ao passo que o excesso, mesmo errado, de alguma forma pune, a omissão é a negação total da Justiça. O juiz Sérgio Moro, da 13 ª Vara Federal de Curitiba, onde tramitam os processos da Lava- Jato, tem se batido nessa questão da impunidade com a autoridade de quem conseguiu prender cabeças coroadas da política e empresários, envolvidos em casos de corrupção no petrolão — personagens até bem pouco tempo atrás fora do alcance da Lei. Em artigo no GLOBO, semana passada, quando voltou a defender a prisão de réus de crimes graves ( corrupção, entre outros) já a partir da sentença proferida por um tribunal de apelação, acentuou: “Reclamase, é certo, de um excesso de punição diante de uma população carcerária significativa, mas os números não devem iludir, pois lá não estão os criminosos poderosos. Para estes, o sistema de Justiça criminal é extremamente ineficiente.”

Essa é a essência de um projeto de lei ( 402/ 2015) que a Associação dos Juízes Federais do Brasil ( Ajufe) apresentou recentemente ao Senado, com o objetivo de estreitar as brechas que levam à inimputabilidade de fato.

A proposta prevê a prisão do réu já a partir da condenação em segunda instância, sem prejuízo, por óbvio, da interposição de recursos até o trânsito em julgado, garantia constitucional do estado de direito. Cortam- se, assim, os caminhos da impunidade. É um princípio aplicado com êxito na Lei da Ficha Limpa, pela qual se veda o registro de candidaturas a políticos condenados por câmaras colegiadas, igualmente assegurado o direito de defesa.

Objetivo semelhante está contemplado em proposta de emenda constitucional ( 15/ 2011) patrocinada pelo ex- presidente do Supremo Cezar Peluso, bem como em documento do MP Federal. São proposições que não ferem a pétrea presunção da inocência, pois asseguram a ampla defesa do réu, e, ao mesmo tempo, dotam o Judiciário de um instrumento de agilização dos trâmites processuais para se contrapor à impunidade — esta, sim, a negação da Justiça.

Risco de injustiça

É preciso respeitar os direitos fundamentais e ampliar as discussões que aperfeiçoem a Justiça

Tramita no Senado o anteprojeto de lei 402/ 2015, que visa a reformar o Código de Processo Penal para introduzir em nosso ordenamento jurídico a regra que permitirá a prisão de acusados dos crimes hediondos, tráfico de drogas, tortura, terrorismo, corrupção ativa ou passiva, peculato e lavagem de dinheiro, antes do trânsito em julgado do processo penal, bastando a condenação em segunda instância.

Trata- se de uma proposta que foi elaborada no âmbito da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro com o apoio da Associação de Juízes Federais do Brasil ( Ajufe).

Se aprovado, um acusado começaria a cumprir uma sanção penal antes que os tribunais superiores ( STJ e STF) apreciassem eventual recurso.

Ocorre que não é raro ver o STJ ou o STF acolher recursos e inocentar pessoas que inicialmente estavam condenadas nas instâncias inferiores. Por essa razão, uma pessoa acusada de cometer uma infração penal não pode ser apenada sem que todas as possibilidades do contraditório e da ampla defesa tenham se esgotado.

O fato é que este anteprojeto ofende o princípio da presunção de inocência, previsto no artigo 5, inciso LVII da Constituição Cidadã, nos seguintes termos: “Ninguém será culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.”

A presunção de inocência é uma cláusula pétrea que nem por emenda constitucional pode ser alterada, conforme estatui o artigo 60, § 4 º , IV da nossa Constituição. Por essa razão, a proposta é inconstitucional e vários juristas já se posicionaram de forma contrária a tal reforma, entre os quais se destacam dois ministros do STF, Celso de Mello e Marco Aurélio.

Além disso, o princípio da presunção de inocência, prevista em todos os estados democráticos, se positivou pela primeira vez para combater a tirania e ver respeitado o devido processo legal, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão elaborada em 1789 com a Revolução Francesa. Posteriormente, foi reafirmada em tratados internacionais, tais como na Declaração Americana de Direitos e Deveres, na Declaração Universal dos Direitos Humanos e no Pacto de São José de Costa Rica.

Os defensores desse projeto sustentam a necessidade da sua aprovação sob argumento de que há morosidade do Judiciário em apreciar e julgar tais casos até o seu trânsito em julgado, o que poderia favorecer a impunidade em razão de diversos fatores, tais como a prescrição penal.

Ocorre que não é retirando direitos e garantias do cidadão e suprimindo instâncias que se alcançará a efetiva justiça. Tais medidas enfraquecem a democracia. Ao contrário, se faz necessário respeitar os direitos fundamentais, fortalecer as instituições e discutir amplamente com a sociedade as mudanças que aperfeiçoarão a Justiça do país.