Conquista do Real em risco

 

MONICA GUGLIANO

O globo, n. 30023, 19//10/2015. País, p. 9

 

Ministro da Fazenda de Itamar Franco, Rubens Ricupero vê riscos às conquistas do Plano Real, relata O embaixador Rubens Ricupero tem uma fisionomia que remete à imagem de um religioso. O olhar tranquilo, a fala suave, mas enfática. O presidente Itamar Franco recordava que o embaixador fora o primeiro nome em quem pensara para conduzir a economia quando tomou posse interinamente, em outubro 1992. Na época em Washington, Ricupero preferiu ficar naquele que sempre foi o principal posto brasileiro no exterior. Dois anos depois, acabou aceitando o convite. Na história do Plano Real, que agora, será recontada no Memorial da República Itamar Franco, o diplomata aparece ao lado de Itamar, sorridente, segurando a nova moeda: o real. Itamar o chamava de “o sacerdote do real”. Hoje, Ricupero teme que a estabilidade alcançada com tanto trabalho seja perdida.

Parabéns. Cartas enviadas a Itamar Franco por brasileiros confiantes no sucesso do Plano Real

— O Plano Real e todas as conquistas que ele nos trouxe correm perigo. A inflação rompeu o patamar simbólico dos dois dígitos. E, se O PT e o ex- presidente Lula, como os jornais noticiam, pretendem tirar da Fazenda Joaquim Levy, o dia de amanhã será pior que o de hoje — alertou.

Itamar Franco convidou Ricupero para a Fazenda novamente quando o então titular da pasta, Fernando Henrique Cardoso, teve que deixar o cargo. FH, estimulado pelo presidente, disputaria a sucessão ao Palácio do Planalto. O sociólogo fez aliança com o PFL e o PTB, e ficou em segundo lugar nas pesquisas até a metade do ano. O sucesso da moeda, lançada em julho, e a desconfiança que o candidato do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, despertava nos agentes econômicos decidiram a eleição, e FHC venceu.

Até chegar a Fernando Henrique — que liderara uma equipe de economistas para criar o Plano Real — e, depois, nomear Ricupero, Itamar já tivera outros três ministros da Fazenda. O primeiro, o advogado pernambucano Gustavo Krause, mal completou dois meses na função. Depois, foi o economista mineiro Paulo Haddad que, até então, ocupara o Ministério do Planejamento. Menos de cem dias depois, outro ministro: o engenheiro civil e mineiro Eliseu Resende ( morto em 2011).

— Ele estava no cargo e veio a denúncia de que tinha ligações com a construtora Odebrecht. Não havia nada a fazer senão trocá- lo — contou o presidente do Instituto Itamar Franco, Marcelo Siqueira.

O ministro da Fazenda, soube Itamar pelos jornais, viajara a Nova York com as passagens e o hotel pagos pela construtora Odebrecht. Ele chamou Resende, e a conversa foi curta: “Tenho muito apreço pelo senhor. Mas ministro do meu governo não viaja com os custos pagos por empreiteiras”, disse.

Itamar, afirmam ex- colaboradores e amigos, tinha duas obsessões. A primeira era implementar um plano social de combate à fome. Criou o Conselho de Segurança Alimentar ( Consea), organismo ligado à presidência que tinha entre seus integrantes o sociólogo Herbert de Souza ( o Betinho), e é considerado o precursor das políticas compensatórias dos governos petistas, como o Bolsa Família, e do Programa Fome Zero, do governo FHC.

— Ele achava que o governo tinha que lutar contra a desigualdade brasileira, por isso também era imprescindível terminar com a inflação — observou Ricupero.

Ao convidá- lo, recorda o diplomata, o presidente só lhe pedira que mantivesse a equipe de Fernando Henrique e levasse o Plano Real adiante. Ricupero assim o fez. Lidou com a maior habilidade possível com Itamar, que insistia num congelamento de preços e se recusava a conversar com os economistas da Fazenda indicados por FH. Negociou com o Congresso, conversou com empresários e sindicatos. Fez palestras e deu entrevistas. Até que, numa delas, a Carlos Monforte, da TV Globo, já em plena campanha eleitoral, escorregou e disse: “O que é bom a gente mostra; o que é ruim gente esconde”.

— Foi um momento terrível, do qual me penitencio até hoje. A frase vazou pelas antenas parabólicas. Se é possível justificar ou explicar, eu estava dizendo o que é mais ou menos óbvio. Ninguém quer contar o que é ruim — disse o embaixador.

A frase era injustificável. Ricupero mesmo tomou a iniciativa de deixar o cargo. A campanha estava no auge, e Itamar convidou o então governador do Ceará, Ciro Gomes, para a Fazenda. Ciro, como fizera seu antecessor, levou adiante as medidas até a eleição de Fernando Henrique.

Então, toda uma geração cresceu sem saber o que era a inflação que tanto incomodava Itamar.

 

Conto inacabado de Itamar revela paixão pelas histórias policiais

 

O presidente Itamar Franco, todos que o conheceram são unânimes em afirmar, não apreciava a vida social. Nas funções públicas que exerceu, desde a eleição para prefeito de Juiz de Fora, em 1966, ele evitava, sempre que podia, jantares, coquetéis ou eventos, muitos inerentes aos cargos. Em casa, gostava de ler, assistir à televisão e escrever. Redigia textos sobre pesquisas de assuntos como engenharia, políticas públicas e economia e afirmava que, se encontrasse tempo para isso, seria escritor. Ao organizar o material que será exposto no Memor ial da República, com inauguração prevista para o próximo mês, em Juiz de Fora, assessores encontraram entre os documentos de Itamar um desses exercícios de literatura: o conto inacabado “Istambul”.

Itamar, contam os mais próximos, lia romances clássicos, poesias e, é claro, os autores mineiros, como Guimarães Rosa, aos quais fazia referências constantes em seus discursos. Na Biblioteca do Memorial, as obras revelam esses gostos e também o interesse por assuntos como religião e meio ambiente. Na Presidência da República, ele mesmo gostava de escrever os textos que leria. Fazia uma primeira versão que, depois, dividia com assessores.

O texto do conto “Istambul” revela a preferência do autor pelo gênero policial e pelas histórias de espionagem. A trama é ambientada na maior e mais famosa cidade da Turquia, conhecida no mundo por seus monumentos, como a fabulosa Mesquita Azul. Em um dos trechos em que descreve a cidade, Itamar observa que ela “é bonita em qualquer época".

Nas quatro páginas da história que foram encontradas, Itamar escreve sobre operações militares, espiões e organizações internacionais como a Organização para o Tratado do Atlântico Norte ( Otan), criada em 1949. “A conexão de Toronto se tornaria importante caso se confirmasse lá uma nova base da Otan. Grande tempestade se abatera sobre a Organização pela venda de armas ao Irã”, diz o texto, que trata da operação de uma venda ilícita de mísseis para o país do Oriente Médio, na época em que as sanções econômicas impostas pelos Estados Unidos e por países europeus impediam o comércio com os iranianos.