O Estado de São Paulo, n. 44518, 06/09/2015. Metrópole, p. A14

Brasil já concede mais vistos de refugiados a sírios que países europeus

ISABELA PALHARES

 

Hania Alkhateb, de 25 anos, diz sentir-se privilegiada por sua filha ter nascido no Brasil, longe da guerra da Síria, mas ainda sonha com o dia em que seu país vai voltar a ter paz para que possa regressar com Zena Salha, de 4 meses. “Ela é brasileira, mas seu país é a Síria. Quero que ela cresça lá, mas só voltamos quando tiver paz.” Hania é um dos 2.077 sírios que conseguiram o refúgio no Brasil desde que o país entrou em conflito.

Os sírios são o povo com mais refugiados reconhecidos no Brasil. Há dois anos, o Comitê Nacional para Refugiados (Conare), do Ministério da Justiça, publicou uma normativa, facilitando a concessão de vistos a imigrantes da Síria, com isso o país se tornou uma das principais alternativas para as famílias que fogem dos conflitos.

O Brasil já concedeu mais refúgios para sírios do que países do sul da Europa, que recebem grande contingente de imigrantes ilegais pela facilidade geográfica. A Espanha, por exemplo, só concedeu refúgio para 1.335 sírios, a Itália para 1.005 e Portugal para 15, segundo a Eurostat, agência de estatísticas da União Europeia.

“Além da questão humanitária, o que já seria motivo suficiente para facilitar a acolhida dessas pessoas, o Brasil está cumprindo com seus compromissos internacionais e sua legislação nacional ao dar refúgio para quem necessita. Assim como nós buscamos melhores condições de vida, essas pessoas têm na imigração a única possibilidade de viver, elas foram obrigadas a sair de seus países”, disse Beto Vasconcelos, presidente do Conare.

Nos primeiros sete meses deste ano, o Brasil concedeu 10,4% mais pedidos de refúgios do que em todo o ano passado. Já são 8.400 refugiados em 2015; no ano passado, foram 7.609. Depois da Síria, os países que mais conseguiram refúgio brasileiro foram Angola (1.480) e República Democrática do Congo (844), ambos com conflitos políticos internos.

Perfil. Os refugiados no Brasil, segundo o relatório do Conare, são na maioria homens (70,7%) e com idade entre 18 e 39 anos (65,6%). No entanto, entre os refugiados ainda há 19% de menores de 17 anos.

Pedro Dallari, diretor do Instituto de Relações Internacionais da USP e um dos especialistas que elabora a proposta de anteprojeto de Lei de Migrações e Promoção dos Direitos dos Migrantes no Brasil, disse que os sírios que migraram para o Brasil nos últimos dois anos são de famílias com maior poder aquisitivo e com maior grau de escolaridade. “Quem vai para a Europa sabe que naqueles países há uma melhor acolhida, com ajuda financeira e abrigos. Já no Brasil eles vão precisar batalhar mais, para conseguir se manter.”

É o caso da família de Hania. O pai, Bahaa, era dono de uma construtora na Síria, mas viu os negócios falirem com a guerra. “Vendi nossos móveis, roupas e colchões para pagar as passagens de todos (cerca de U$ 800 para cada um dos sete integrantes da família). Quando chegamos ao Brasil, tinha apenas U$ 29 na carteira e nenhum lugar para ir. Um funcionário do aeroporto que nos indicou ligar para uma ONG”, contou Bahaa. A família está há um ano no Brasil e mora na sede da ONG Livro Aberto, em Guarulhos.

Ao contrário da irmã, Akram, de 21 anos, não pensa em voltar para a Síria, onde cursou um ano de Medicina, mas precisou abandonar os estudos. “Vou prestar vestibular para recomeçar Medicina. Quero ficar aqui no Brasil, montar meu consultório e dar uma boa vida para os meus pais”. O sonho de Akram é se tornar oftalmologista.

 

País é alternativa mais segura, diz refugiado

Engenheiro mecânico temia ter uma vida precária na Europa e preferiu vir para o País mesmo sem conhecer ninguém

Apesar dos países europeus ainda serem vistos como mais vantajosos para os imigrantes, por causa da ajuda financeira e das políticas de acolhimento – como abrigos e programas de emprego –, os sírios que vieram para o Brasil disseram que o País é uma alternativa mais segura, sobretudo para as famílias.

O engenheiro mecânico Talal Al-Tinawi, de 42 anos, mudou-se para o Brasil com a mulher e os dois filhos, hoje com 13 e 10 anos, há cerca de um ano, quando viu que a situação na Síria só se agravava. “Não dava para criar meus filhos naquela situação, mas também não ia arriscar ir para a Europa de forma precária e colocar a vida deles em risco. Por isso, vim para o Brasil, mesmo sem conhecer ninguém.”

Al-Tinawi tem um irmão que arriscou a travessia de barco até a Europa e agora está na Alemanha. “Lá, ele vai ficar um ano em um abrigo para refugiados, aprendendo alemão e recebendo. Aqui é diferente, estou trabalhando muito e ainda assim é difícil.” Al-Tinawi não conseguiu emprego como engenheiro. Por isso, ele a mulher começaram a cozinhar pratos típicos sírios para vender. Estão arrecadando dinheiro para abrir um restaurante em São Paulo.

Engenheiro de computação, Fadi Khankrin, de 32 anos, veio para o Brasil há um ano e meio só com a mulher, apesar de também não conhecer ninguém no País. Recém-casados, eles queriam começar uma família, mas tinham medo da situação na Síria. “Juntamos nossas economias e viemos para cá. Minha mulher está grávida de 7 meses e eu ainda não consegui emprego. Não sei como vamos fazer quando o bebê nascer”, disse, preocupado.

Crise migratória. O mundo enfrenta a pior crise de refugiados desde a 2.ª Guerra Mundial. Segundo dados da Organização Internacional para as Imigrações (OIM), só neste ano cerca de 365 mil imigrantes atravessaram o Mediterrâneo, e mais de 2.700 morreram na travessia. O caso causou comoção na quarta-feira quando jornais de todo o mundo publicaram a foto do menino sírio Aylan Kurdi, de 3 anos, que morreu afogado quando sua família tentava a travessia do mar Egeu. “Ficamos com o coração entristecido, são nossas crianças morrendo. Infelizmente, esse menino não foi o único”, disse Al-Tinawi. Dos 4 milhões de sírios refugiados no mundo, mais de 1 milhão é de crianças