Lar, amargo lar

Solange Jurema 

13/11/2015

Os dados estatísticos de pesquisas têm o dom de acabar com as ilusões das pessoas, de um grupo social ou mesmo de toda sociedade, além de calar aqueles intermináveis debates fundamentados no "eu acho que..." É porque os números são implacáveis, irrefutáveis, inquestionáveis. Pelo menos a maioria deles, quando há metodologia, tabulação e sistematização correta das informações coletadas. 

Esse, certamente, é o caso do Mapa da Violência 2015: Homicídios de mulheres, divulgado no começo da semana pelo governo federal e publicado pela Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais (Flacso). De autoria de Julio Waiselfisz, o documento traz novos dados estarrecedores para a situação da mulher no Brasil e as agressões fatais que sofre. O principal deles: mais da metade dos homicídios - exatos 50,3%, um absurdo - contra as mulheres são cometidos por familiares, dos quais 33,2% são parceiros ou ex-parceiros, e 27,1%, ocorridos no domicílio da vítima.Ou seja, as brasileiras são mortas em casa, na maior parte das vezes pelo marido, ex-marido, companheiro, ex-companheiro. Definitivamente, não se trata de um doce lar e, sim, de amargo lar. 

Esse percentual expressivo aponta para urgente e necessária prevenção familiar, por parte do Estado, para que o verdadeiro quadro de terror seja reduzido, minimizado. Não se pode imaginar que um país, como o Brasil, conhecido, teoricamente, por ter um povo pacífico e tolerante em sua formação étnica, conviva com números tão violentos e mesmo humilhantes contra as mulheres, especialmente as negras.

Como se pode viver tranquilamente nos milhões de lares brasileiros sabendo-se que, em mais da metade deles, mulheres sofrem agressões que levam à morte, praticadas por pais, irmãos, filhos e, principalmente, cônjuges ou ex-cônjuges? Essa situação é insustentável, inadmissível, repito, vergonhosa e, socialmente, injusta e mais ainda inaceitável à medida que dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que cerca de 40% dos lares brasileiros são mantidos, exclusivamente, por mulheres. 

Ou seja, nos dias de hoje da sociedade brasileira, as mulheres sustentam as famílias e mesmo assim são assassinadas por pessoas próximas. É vergonha para todos nós, homens e mulheres, e não menos para o Estado brasileiro, que carece de políticas públicas suficientes e voltadas para combater a violência doméstica. Não há nem mesmo campanha institucional ou uma única peça publicitária que mostre esse terrível quadro, que conscientize e eduque os homens e oriente as mulheres a denunciarem as primeiras agressões. 

Registrar, discorrer e alertar sobre a violência familiar contra a mulher é apenas focar num aspecto do Mapa da Violência 2015: Homicídios contra mulheres. Os demais números não são menos graves, aterrorizantes ou, ainda, constrangedores. A cada dia, matam-se 13 mulheres no Brasil, segundo os dados de 2013. Não é o caso apenas de se entristecer ou se lamentar, como ponderam as autoridades federais brasileiras, mas, sim, de agir e, a curto prazo, promover efetivamente o combate a essa criminalidade. Criminalidade que atinge de maneira ainda mais perversa a mulher negra do país, especialmente as jovens na faixa etária de 18 a 30 anos, vitimizadas por 39% dos homicídios. 

No caso da mulher negra, os números são mais contundentes e fortes e revelam, novamente, que as políticas públicas do Estado brasileiro são precárias e insuficientes para estancar a violência. É necessária política pública destinada a contemplar, de maneira pontual, a realidade da mulher negra no país, especialmente a jovem de 18 anos, faixa etária mais atingida pelos homicídios (cerca de 4% do total). 

Um outro dado da pesquisa da Flacso mostra que há algo de profundamente equivocado nas políticas públicas de combate a criminalidade contra a mulher negra. No período de 2003 a 2013, o número de mortes violentas de mulheres brancas caiu 9,8%, enquanto os feminicídios contra negras aumentaram 54%. A frieza dos números estatísticos não pode aplacar nossa indignação. É preciso, reagir e agir. 

Nos manuais policiais não há explicação plausível, a não ser o preconceito de gênero e de raça que castiga de maneira especial esse segmento. Mais uma vez, os fatos e a realidade destroem o mito de cordialidade e da convivência racial pacífica em nosso país. É uma realidade dolorosa e que exige de todos nós, sociedade e governos, ação muito mais efetiva e contundente do que a que estamos vendo nos dias de hoje. 

 

Correio braziliense, n. 19163 , 13/11/2015. Opinião, p. 11