Correio braziliense, n. 19.241, 30/01/2016. Opinião, p. 11

Aborto em razão de estupro

Por: MÔNICA SIFUENTES

Se existe um tema delicado para escrever é sobre o aborto. Valores, princípios, crenças e até superstições se veem imbricados em debate que parece não ter fim ou não chegar a lugar algum. Princípios constitucionais de proteção à vida humana, como o direito do embrião de desenvolver-se e tornar-se uma pessoa, chocam-se com o direito à dignidade da mulher, sua autonomia em dispor do próprio corpo e de escolha em ser ou não ser mãe. Sobressaem ainda indagações biológicas e filosóficas sobre o momento em que a vida começa e o feto pode ser considerado um ser que merece a proteção do Estado. Surgem questões sociais e de saúde pública, presentes em países como o nosso, que não dispõem de satisfatória assistência médica e hospitalar à mãe em casos de interrupção de gravidez.

A discussão sobre a prática do aborto é talvez mais antiga do que a relativa à pena de morte. Na Grécia, Aristóteles o aconselhava, desde que o feto não tivesse adquirido alma, para manter o equilíbrio entre a população e os meios de subsistência. Platão dizia que assim deveriam proceder as mulheres, após os 40 anos, naturalmente em razão do risco que uma gravidez tardia representava à época. Na Roma antiga, o produto da concepção era considerado parte do corpo da gestante e, portanto, se lesão houvesse, seria à própria mãe e não ao feto. Mais tarde passou-se a considerar o aborto como violação do direito do marido à prole, momento em que a conduta passou a ser castigada com penas gravíssimas.

O Código Penal brasileiro, de 1940, foi surpreendentemente avançado para uma sociedade ainda rural, patriarcal e de maioria católica. Permitiu o aborto em dois casos: quando ele fosse necessário para salvar a vida da gestante, ou quando a gravidez resultasse de estupro, que ficou conhecido na doutrina como “aborto sentimental”. Os requisitos exigidos, ainda em vigor, são apenas que a intervenção cirúrgica seja feita por médico e que haja o consentimento da gestante ou de seu representante legal.

O médico é que tem autoridade para decidir, diante do caso, e naturalmente sob a fé do seu grau, se o aborto deve ser realizado. Não é necessário que exista processo contra o autor do crime sexual nem muito menos sentença condenatória, mesmo porque, a essa altura, a criança já teria nascido. O Supremo Tribunal Federal recentemente ampliou as hipóteses em que é possível o aborto, ao entender ser ele cabível também nos casos de fetos gerados com a malformação do cérebro, ou anencefálicos.

Causou surpresa, portanto, diante de abertura já bastante consolidada no ordenamento jurídico brasileiro, o Projeto de Lei 5069/2013, aprovado em outubro do ano passado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados. Por ele se pretende dar nova redação ao art. 128 do Código Penal, acrescentando mais duas condições para que o aborto em razão de estupro seja autorizado: que a violência seja constatada por exame de corpo de delito e seja comunicado o fato à autoridade policial.

O retrocesso é claro. Caso seja aprovado o projeto, surgirá outra questão, bastante complexa, nem sequer cogitada na redação original do código: o direito de a vítima de estupro escolher se e quando comunicar o fato à polícia. Por óbvio que qualquer forma de violência deve ser prevenida, reprimida e punida. Mas não se pode desconhecer que há casos em que a vítima opta, por motivos particulares e da sua intimidade, por não denunciar. Ou então prefere, para se recompor física e emocionalmente, não fazê-lo de imediato.

O projeto empurra a vítima de estupro para uma sinuca de bico: ela passa a ter que comunicar o fato à autoridade e se submeter ao exame de corpo de delito o mais rápido possível, antes mesmo de ter a confirmação da gravidez. Caso contrário, não poderá se submeter ao aborto permitido pela lei.

Se o tempo passar, as marcas deixadas pelas feridas ou lesões físicas poderão já não ser mais visíveis e, portanto, não serão atestadas no exame de corpo de delito. Os danos emocionais e transtornos psíquicos, a seu turno, se relatados pela vítima imediatamente após o fato, com declarações pormenorizadas da constrangedora, incômoda e dolorosa situação a que foi submetida, terão como resultado a revitimização, situação que é de certo modo prevenida pela lei.

Pelo código em vigor, a vítima de estupro pode esperar um tempo para colocar a cabeça em ordem, recuperar-se emocionalmente, ou mesmo aguardar o resultado dos exames para saber se está grávida ou não. Pode optar, por motivos vários, em não divulgar o fato e denunciar o agressor. Caso o projeto seja aprovado, ela não terá mais essa escolha.

 

DESEMBARGADORA FEDERAL

 

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