O globo, n. 30114, 18/01/2016. Opinião, p. 13

Uma bizarra semelhança

Roberto D'Araujo

Um dos maiores problemas brasileiros é o drama da Previdência, cujo déficit é crescente. Outro é a crise do setor elétrico, com tarifas explosivas, apesar das nossas vantagens naturais. Um não tem nada ver com o outro? Não tenha tanta certeza. Os princípios de “intervenção destrutiva” são os mesmos.

Sob o conhecido “nunca dantes nesse país”, em setembro de 2012 o governo anunciou a redução de 20% nas contas de luz. O consumidor desinformado desconhecia que, segundo dados oficiais da Aneel, de 1995 até 2012, só a parcela de energia (o kWh) da conta média residencial já tinha se elevado 65% acima da inflação. Impostos, transmissão e encargos não estão contabilizados nessa conta. Portanto, a verdade é que a “benesse” foi apenas um freio insuficiente para estancar a escalada.

Claro que havia muitas razões para a elevação de preços, mas, ao invés de um diagnóstico, como um milagre, entra em cena a “velhice” das usinas. De repente, lembraram que as hidrelétricas dos grupos Eletrobras, Cesp, Cemig e Copel, eram antigas e deveriam estar amortizadas, ou, fazendo a analogia com o tema do artigo, “aposentadas”. Bingo! As usinas são do povo e ele já pagou por elas.

Estava tudo contabilizado, auditado e aprovado pela Aneel. Havia amortização? Claro! Se fosse aplicada a oficial, seria preciso grandes alterações de regulação? Não, mas a redução tarifária seria insuficiente para a promessa. Assim, num passe de mágica, rasgaram regulações e balanços e aplicaram uma redução drástica na “aposentadoria” das usinas velhas.

Hoje, as usinas do grupo Eletrobras são obrigadas a vender energia por um preço baixo recorde no planeta. Alguém conhece uma usina de qualquer fonte primária que esteja gerando 1 MWh por menos de US$ 3? Só no Brasil. Evidentemente, sabendo fazer contas e sem a mão de ferro do governo federal, Copel, Cemig e Cesp não aceitaram a proposta, o que piorou o quadro.

Mas, afinal, que diabos o setor elétrico tem a ver com a Previdência? Simples! Sem a intervenção de 2012, as hidrelétricas velhas eram capazes de gerar recursos para a construção de novas usinas. São “velhas senhoras”, mas ainda “férteis”. O que a política de baixar tarifas “na marra” fez foi uma “laqueadura” nas velhas hidrelétricas que, à míngua, passaram a não gerar nem um real para que nasçam novas e ainda não conseguem estancar a escalada tarifária.

Na Previdência, a direção temporal era a inversa. Os jovens contribuem para que os velhos possam se aposentar. A ingerência realizada é muito semelhante e ocorreu no mesmo ano. Assim como a Lei das Tarifas (12.783), a Lei 12.618/12 estabeleceu que um novo servidor público contribui com 11% de seu salário para o Regime Próprio de Previdência Social, até o limite de R$ 3.916,20 (teto). Portanto, um novo funcionário entra pagando pouco mais do que R$ 400 por mês. Se ele quiser se aposentar com salário maior, tem que contribuir para o Funpresp, um típico seguro pessoal, não contribuindo para financiar um velho colega. Assim, um funcionário em fim de carreira pode se aposentar com R$ 10 mil por mês, enquanto um novo contribui com apenas R$ 400 por mês. Em termos marginais, está instituído um déficit de R$ 9.600 por mês. O princípio de solidariedade temporal foi para o ralo.

Outro aspecto pouco entendido é a “pejotização”, em que “empregados” são transformados em pessoas jurídicas pagando muito menos para a Previdência do que pagariam se fossem empregados sem aspas. Professores, médicos, jornalistas, advogados, engenheiros, contadores e muitas outras profissões com vencimentos altos contribuem pelo mínimo empresarial e buscam seguros individuais para sua velhice.

Não se está afirmando que não ocorrem problemas de desequilíbrio ligados ao envelhecimento da população. Também não afirmamos que usinas de mais de 30 anos não tenham amortização. O que estamos afirmando é que houve uma intervenção que desmonta o princípio velho-novo que inviabiliza um financiamento próprio nas duas atividades.

Repararam a ausência de privatização ou estatização? Na realidade, esse debate polarizado perturba o entendimento do que se deteriora. Antes de ser estatal ou privado, há estruturas temporais benéficas nessas atividades que estão sendo desmontadas. Lamentavelmente, os conceitos em perigo são o coletivo e o público.