O globo, n. 30124, 28/01/2016. Economia, p. 21

Dívida cara, renegociação maior

Geralda Doca

Em 2015, os brasileiros não só se endividaram mais — e nas modalidades mais caras de crédito — como correram para renegociar as dívidas que já tinham. Dados do relatório anual do Banco Central ( BC) sobre operações de crédito, divulgado ontem, mostram aumento de 15,2% no volume de refinanciamento dos débitos atrasados das famílias, ou mais R$ 3,32 bilhões regateados com o sistema financeiro nacional. O total, que era de R$ 21,914 bilhões em dezembro de 2014, passou a R$ 25,234 bilhões no encerramento do ano passado, como reflexo da crise, do desemprego e da queda na renda. No caso das empresas, a procura pela renegociação foi ainda maior: o montante teve alta de 29,8%, saindo de R$ 80,366 bilhões para R$ 104,318 bilhões.

Para especialistas, os dados ilustram o cenário conturbado que o país atravessa, com a recessão se refletindo na dificuldade das famílias em fechar suas contas. Também chama a atenção no relatório do BC o fato de o crédito rotativo — e, portanto, mais caro — ter aumentado a um ritmo muito mais acelerado do que o não rotativo ( mais barato). A tomada de financiamento por cartões de crédito e cheque especial subiu 7% no ano passado ( mais R$ 12,2 bilhões), enquanto o endividamento por crédito pessoal e consignado, por exemplo, teve expansão de 1,3% ( mais R$ 7,7 bilhões).

 

BUSCA DE EMPRESAS POR CAPITAL DE GIRO CAI 3,5%

A taxa de juros do cartão de crédito atingiu 431,4% ao ano, recorde histórico. Os juros do cheque especial bateram 287% ao ano em dezembro, os mais altos em 20 anos. Os dados revelam uma piora generalizada no custo dos empréstimos para as famílias no ano passado: os juros médios subiram 14 pontos percentuais, para 63,7% ao ano; e o spread ( diferença entre o custo de captação dos bancos e o valor cobrado dos tomadores) aumentou 10,7 pontos percentuais para 48%.

Às vésperas de o governo anunciar medidas para estimular o crédito, o relatório do BC revela que, com as taxas estratosféricas, a expansão dos empréstimos desacelerou. No ano passado, o volume total de financiamentos cresceu 6,6%, abaixo da previsão do BC, que era de 7%, e bem inferior ao ritmo de 2014, de 11,3%. O recuo aconteceu tanto do lado das empresas, quanto das famílias. No caso das companhias, o volume destinado a capital de giro, diretamente ligado à atividade econômica, caiu 3,5% em 2015, a primeira queda desde o início da série histórica do BC, em 2007.

O chefe do Departamento Econômico do BC, Tulio Maciel, destacou que, ao contrário de 2010 ( quando o governo também estimulou o crédito via bancos públicos), há pouca demanda por crédito. Ele alertou para o pacote de medidas que o governo vai anunciar, com o intuito de aquecer a economia. Segundo Maciel, é preciso cuidado para que as condições dos financiamentos não gerem, por exemplo, alta expressiva na inadimplência. Na avaliação do BC, os dados do crédito de 2015 são “benignos” e condizem com o cenário econômico.

— É importante ter atenção nas condições desses empréstimos, para que isso não venha a ter algum tipo de implicação na qualidade do crédito — destacou Maciel, reforçando a análise de alguns economistas críticos a novas medidas de estímulo a crédito.

Para o economista da Tendências Consultoria, João Moraes, o pacote do governo pode ter algum impacto na economia, principalmente se as taxas forem inferiores às do mercado. Mas não o suficiente para reverter o quadro negativo, diante do grau de incerteza e da persistência de indicadores econômicos ruins, como alta da inflação, do desemprego e queda na renda das famílias. Na projeção da Tendências, o crédito vai crescer ainda menos em 2016 ( 5,6% em termos nominais).

Moraes destacou o aumento no volume dos refinanciamentos, reflexo do cenário conturbado, lembrando que os bancos estão mais flexíveis em renegociar dívidas atrasadas para evitar novos prejuízos. Porém, disse que as instituições continuarão rigorosas nas novas concessões de crédito, com medo do aumento na inadimplência, e devem pressionar as taxas do cartão e do cheque especial, como forma de se se proteger:

— As taxas de juros vão continuar subindo, e a tendência é queda no ritmo das concessões.

A microempresária Luana Suares gastou mais do que podia no cartão de crédito. E, quando veio a fatura acima de R$ 800, para não comprometer o orçamento, ela fez só o pagamento mínimo. Nos meses seguintes, a dívida veio ainda mais alta devido aos juros. O jeito foi negociar com o banco. Além de conseguir juros menores, ela conta que o fato de o cartão ter ficado bloqueado, nos três meses do parcelamento que ela contratou, ajudou ela a se organizar e quitar o débito. Luana lembra que já se enrolou mais com dívidas de banco e que tinha renegociado a fatura do cartão no início de 2014. A microempresária também já precisou renegociar a dívida do cheque especial:

— Eu estava usando o cheque especial como uma renda complementar, e esse foi o meu erro — contou. — Eu renegociei e pedi para tirarem esse crédito. O cartão eu acho importante ter, mas cheque especial, nunca mais.

Segundo Miguel de Oliveira, diretor da Associação Nacional dos Executivos de Finanças ( nefac), os consumidores endividados devem evitar rolar dívidas com cartão de crédito e cheque especial. O conselho é procurar os bancos para substituir o financiamento por modalidades mais baratas e renegociar as pendências.

— O que não pode é ficar rolando a dívida porque ela vai se tornar impagável, principalmente no cartão de crédito — disse.

Ele fez a simulação de uma dívida no cartão de crédito no valor de R$ 1 mil, com taxa de 431,4% ao ano (14,93% ao mês): em 12 meses, o débito saltará para R$ 5.311. No caso do cheque especial, este mesmo valor subirá para R$ 3.871 em um ano. Colaborou Priscilla Aguiar Litwak.

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Governo anunciará hoje medidas de estímulo ao crédito de até R$ 70 bi

Martha Beck

Geralda Doca

Danilo Fariello

O governo vai aproveitar a reunião do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), hoje, para anunciar medidas de estímulo ao crédito que somam entre R$ 50 bilhões e R$ 70 bilhões. Estas incluirão o reforço de linhas de crédito do BNDES, Banco do Brasil, FGTS e Caixa, no montante de R$ 50 bilhões. Esse dinheiro foi injetado nos bancos públicos graças ao pagamento das “pedaladas fiscais” no fim de 2015 — no último dia 10, O GLOBO antecipara que a equipe econômica estudava usar esses recursos para estimular o crédito.

Além disso, deve ser dada a permissão para que o FGTS passe a garantir empréstimos consignados, o que reforça o plano em mais R$ 8 bilhões. Outros R$ 10 bilhões virão de outras medidas. E estão previstos ainda incentivos para quem quitar empréstimos habitacionais antecipadamente.

Em outra frente, o presidente do Sebrae, Guilherme Afif Domingos, disse ontem que trabalha com o BNDES para criar uma linha de crédito direcionada de até R$ 30 mil a micro e pequenas empresas, com faturamento de até R$ 3,6 milhões por ano, com aval de fundos garantidores públicos, o que permitiria cobrar juros menores. O contrato desses empréstimos será dispensado de registro em cartório. A nova linha deve ser anunciada em fevereiro.

 

CRÍTICAS AO USO DO FUNDO

Técnicos da área econômica passaram os últimos dias definindo que medidas poderiam ser apresentadas aos empresários no Conselhão. O uso do FGTS para o consignado, por exemplo, é algo polêmico e que enfrenta resistências no governo. Mas, até a noite de ontem, as chances de que a ação fosse anunciada “eram de 80%”. Segundo integrantes do Ministério da Fazenda, a ideia é dar mais segurança aos financiamentos com desconto em folha e, assim, permitir uma redução das taxas de juros nessas operações.

Técnicos lembram que, no setor público, o salário serve como garantia ao consignado. No setor privado, porém, as taxas são mais altas, pois os bancos consideram haver mais riscos. Os empregadores podem, por exemplo, não pagar todos os direitos dos trabalhadores em caso de demissão. Assim, o FGTS poderia ser uma proteção maior ao crédito.

Inicialmente, a ideia do governo era permitir que a multa de 40% do FGTS ( paga pelas empresas nos casos de demissão sem justa causa) servisse como garantia para o consignado. Mas há a avaliação de que somente a multa não seria suficiente. Seria preciso também usar uma parte do próprio Fundo para garantir os empréstimos. Caso a medida saia do papel, as alternativas são: o uso integral da multa de 40%, ou o uso de parte da multa com 10% do saldo do FGTS.

A resistência à proposta, no entanto, é grande. O Conselho Curador do FGTS não concorda com a medida, com o argumento de que ela prejudica o trabalhador. Se ele for demitido, não poderá sacar os recursos que foram oferecidos como garantia. Outra crítica é que a medida levaria ao endividamento dos trabalhadores e estimularia acordos para demissão sem justa causa, elevando os gastos com seguro- desemprego e a informalidade.

Para o representante da Força Sindical no Conselho Curador, Rodolfo Torelly, a proposta tem falhas técnicas e fere o objetivo do FGTS de proteger o trabalhador em caso de demissão:

— Essa proposta não tem cabimento. Você vai pegar mais recursos do trabalhador para servir de base ao pagamento de empréstimo. O problema hoje não é falta de crédito, mas as incertezas na economia e na política.

Segundo Luigi Nese, representante da Confederação Nacional de Serviços no Conselho Curador do FGTS, a proposta representa uma interferência do governo na vida dos trabalhadores para beneficiar o setor financeiro. Ele ressaltou que os economistas recomendam sempre, em caso de demissão, quitar primeiro dívidas com juros maiores, como cartão de crédito e cheque especial, e não o consignado.

 

CONSELHO AMPLIADO

O Ministério do Trabalho e Previdência, que preside o Conselho Curador do FGTS, e a Caixa também se opõem. Segundo fontes, os críticos ponderam que a medida requer uma mudança na lei do FGTS.

A presidente Dilma Rousseff decidiu ampliar o número de conselheiros do CDES. Inicialmente com 90, o órgão terá mais dois membros da sociedade civil: a ex- jogadora de vôlei Ana Moser, presidente da ONG Atletas pelo Brasil, e o primeiro professor universitário indígena do país, Eliel Benites, guarani- kaiowá. Serão 27 integrantes da sociedade civil, 20 representantes dos trabalhadores e 45 empresários.