O globo, n. 30.147, 20/02/2016. Economia, p. 18

O corte que é déficit

O governo anunciou uma coisa e fez o oposto. O que aconteceu ontem foi que o governo disse que pode ter um déficit de 0,97% do PIB. Tudo foi mascarado com medidas complexas, projetos que sequer foram formulados e um corte de despesas de R$ 23,4 bilhões. M

Omago Merlin e o Dr. Gastão voltaram a atuar na política econômica. São dois seres que já estiveram em ação no primeiro mandato da presidente Dilma. Foram eles que fizeram as peripécias e invencionices que arruinaram a economia brasileira. Mesmo mudando os ministros, os dois permanecem. E eles são sempre criativos. Foi o que se viu ontem. O espetáculo de transformismo não ficou apenas na apresentação de um relaxamento fiscal como sendo um aperto fiscal. Eles foram além e inventaram novas criaturas.

O governo — vejam vocês — está contando com R$ 12 bilhões de um dinheiro que não é dele e que na verdade é dívida para com terceiros. É assim: o governo descobriu que o dinheiro de pagamento dos precatórios — dívidas já confirmadas pela Justiça — não é sempre sacado pelos credores. Há recursos que estão lá há mais de quatro anos. Por isso o governo quer pegar esse valor e fazer um fundo. Melhor seria ter um sistema de comunicação aos beneficiários de que os sempre prolongados processos na Justiça já terminaram. Quem acionou o governo pelo direito de receber um dinheiro só não foi pegar se não sabe que está à sua disposição.

Foi feita a seguinte suposição: se no passado um percentual dos precatórios não foi sacado, este ano o mesmo percentual também não será retirado. Somando o que eles acham que não será sacado este ano com o que está parado nos bancos, o governo chegou nestes R$ 12 bilhões e com eles vai criar esse Fundo Financeiro de Precatórios. E esse dinheiro entra na conta como receita. Era exatamente assim que trabalharam no passado o Mago Merlin e Dr. Gastão. Eles transformavam dívida em receita e saíam por aí pedalando.

O dia de ontem era para anunciar os cortes, mas o que veio a público mesmo é que o governo quer “um espaço fiscal adicional para acomodar frustração de receita”. O que significa que bastará a qualquer governo inventar uma CPMF ou coisa que o valha, com pouca chance de ser aprovada, e depois dizer que se o dinheiro não chegar ele pode gastar ainda assim e pedir ao Congresso um “espaço fiscal”.

Não é apenas CPMF. O Orçamento está cheio de suposições de receitas: o dinheiro que pode vir a ser trazido ao Brasil pela Lei de Repatriação, os dividendos que poderão ser pagos pelas estatais se elas tiverem lucros, pagamento que pode ser feito por concessões que o governo ainda não licitou. Essa arrecadação era duvidosa desde o início, mas agora virou certeza, porque o governo dirá ao Congresso que, já que houve frustração dessas receitas, ele quer um espaço para gastar ainda assim. O nome disso é inventar dinheiro e produzir déficit. Equivale a uma pessoa que sonha com um aumento de salário e gasta por conta e depois quer que o banco não lhe cobre juros pelo cheque especial argumentando que ele não teve o aumento de salário que planejava receber.

Na terceira parte do anúncio, os ministros Nelson Barbosa e Valdir Simão quiseram convencer que estão fazendo uma ambiciosa “reforma fiscal”. Avisaram que será criado um mecanismo em que a LRF estabelece limites de gastos para o PPA que determina um valor para a LDO que poderá cortar várias despesas e, por último, até congelar o salário mínimo.

Essa sopa de letras não resolve o dilema das despesas obrigatórias no Orçamento. Não há mecanismo de circunavegação da terra. Não é criando uma fórmula circular que esse omelete poderá ser feito sem quebrar os ovos. Esse é um problema difícil que em algum momento precisará ser enfrentado.

Barbosa disse também que no ano passado foi feito um “esforço extraordinário de corte de gastos” e que fará outro este ano. Como 2015 terminou com o maior déficit da história, a comparação aumenta a preocupação de quem quer equilíbrio nas contas públicas. Já Mago Merlin e Dr. Gastão adoraram os anúncios.