O globo, n. 30.176, 20/03/2016. Mundo, p. 35

Capitalismo à cubana

Microempresários podem ser a chave para transformação defendida por americanos

POR HENRIQUE GOMES BATISTA

 

HAVANA — Barack Obama chega neste domingo em Havana para fazer história. A primeira visita de um presidente americano a Cuba em 88 anos é cercada de simbolismos, esperanças e incertezas. Para os cubanos, o fim do embargo econômico é o grande objeto desta aproximação, pois muitos culpam o bloqueio pelas dificuldades enfrentadas pelo povo. Mas enquanto a grande mudança econômica da ilha não vem, silenciosamente um novo grupo de cubanos começa a fazer história: os empresários.

 
Pequenos negócios

Donos de cães ainda não compram ração, mas já pagam para embelezar e mimar as mascotes - Daniel Ramalho

 
Esta categoria, inexistente há alguns anos, hoje começa a se tornar parte relevante da sociedade cubana. Os donos de seus pequenos negócios já conseguem acesso a dinheiro sem depender necessariamente dos turistas e, com seus lucros, movimentam a engrenagem da combalida economia do país. A crescente classe de empreendedores pode ser um dos pilares das mudanças políticas e sociais que os americanos desejam.

O melhor exemplo desta mudança é a Don Silver, cadeia de “estética canina” com três endereços em Havana. Embora ainda não exista ração de cachorro na Ilha de Fidel Castro (é preciso cozinhar o alimento dos animais), os donos de mascotes buscam serviços especializados para embelezá-los. Aberta há três anos, a unidade do bairro Carlos III tinha de um a dois clientes por dia. Atualmente, a média mensal está em 14, que pagam de 8 CUCs a 25 CUCs (de R$ 34 a R$ 207) para cortar o pelo, aparar as unhas, banhar, perfumar e comprar brinquedos para seus animais de estimação, no mais tradicional modelo ocidental.

— Em Cuba há mercado para todo tipo de produto e serviço. A demanda existe. Acredito que hoje é o país com mais oportunidades do mundo — afirma o neoempresário Miguel Calvo, dono da Don Silver, que defende a iniciativa privada como fonte de mudanças. — Obama não é mágico, ele é presidente, e o presidente não é o dono dos Estados Unidos, não vai poder mudar as coisas do dia para a noite. Eu passei meus 47 anos de vida esperando o fim do bloqueio.

Cubanos tomam as rédeas

Este é o exemplo da nova classe cubana, que é formada majoritariamente por donos de restaurantes, cafeterias e, principalmente, proprietários que abriram suas casas para o recebimento de turistas. A diferença, contudo, é que cada vez mais quem movimenta estes negócios são os próprios cubanos. Este é o caso de Yeni Lotti, que há dois anos tem um dos mais badalados salões particulares de beleza da capital cubana.

— A maior parte de nossos clientes é de cubanas. Como pude viajar ao exterior, consegui ver como funcionam estes salões e pude trazer este tipo de serviços para Cuba. Temos preços muito competitivos, um corte começa em 5 CUCs (R$ 21,50) — diz Yeni, em um salão lotado de clientes em pleno sábado, inclusive um grupo de aeromoças espanholas que prefere cuidar do cabelo em Havana, por ter, segundo elas, padrão internacional com um preço mais barato.

Mas a vida destes novos empresários cubanos não é tão simples. Além do risco do negócio, eles precisam enfrentar uma nova realidade que não é ensinada no país. Yeni conta, por exemplo, com nove funcionários e tem de lidar com todas as questões trabalhistas. Mas, para ela, a cultura da concorrência, que começa a crescer, é um dos maiores desafios.

— Estamos aprendendo do zero a criar um relacionamento com nossos consumidores — resumiu Yeni, que usa uma espécie incipiente de marketing: mensagens a celulares com promoções.

 

Nova classe emergente

Esta concorrência está mudando até o paladar dos cubanos, que agora podem contar com restaurantes japoneses, hindus e iranianos. Outros movimentos continuam a surgir, como o manifesto dos 20 principais cineastas cubanos que querem uma reforma do sistema, transformando a estatal cubana da audiovisual numa representante no exterior. O governo ainda não deu resposta ao grupo.

— Há em Cuba uma nova classe emergente, que consegue participar do consumo e visitar outros países. Infelizmente, essa não é a realidade para a maioria do povo — conta um cubano que preferiu não se identificar.

Embora as grandes mudanças econômicas ainda não tenham chegado, como financiamentos, empréstimos e venda livre de casas — inclusive para estrangeiros —, estes empresários alimentam uma economia mais diversificada que no passado. Há mais produtos importados e menos isolamento, embora alguns vejam um aumento das desigualdades do país. Muitos cubanos estão ao largo deste movimento e continuam recebendo seu salário em pesos cubanos, que equivalem a 17 CUCs mensais, ou R$ 73,20, sobrevivendo ainda graças ao programa de preços subsidiados de produtos básicos, como alimentos.

Obama já deixou claro que quer apoiar esta nova força da iniciativa privada para acelerar mudanças políticas no país. Em seu programa de viagem, que começa hoje à tarde, num encontro com o arcebispo de Havana, ele quer se reunir com representantes do empreendedorismo, além da oposição e, claro, do presidente Raúl Castro. O presidente americano deixará Havana na terça, quando seguirá direto para uma visita de Estado à Argentina.

Até a indústria de turismo interno ganha impulso. Hotéis de Varadero e Cayo Largo, que chegavam a fechar no verão cubano (baixa temporada para europeus), agora têm hóspedes locais. Mas o principal motor da economia cubana continua investindo prioritariamente nos estrangeiros. Neste histórico mês de março, o país deve fechar com recorde: um milhão de turistas em 30 dias. Para se ter uma ideia, todo o Brasil recebe seis milhões de turistas por ano.

— Sempre tive o sonho de vir para Cuba, meus amigos de Nova York ficaram com muita inveja de minha viagem. Na verdade, prevejo que teremos uma invasão de americanos aqui nos próximos anos — aposta Susan Most

O que os cubanos esperam de Obama

Depois da época de desabastecimento, local voltou a ter prateleiras cheias - Daniel Ramalho / Daniel Ramalho

 

‘Temos que apostar na empatia’

“Não há outra maneira de fazer uma transição pacífica que não seja através do diálogo. A visita de Barack Obama é positiva. Mas ele deve mostrar de maneira clara seu apoio aos direitos humanos. No entanto, os avanços na ilha não estão em suas mãos. Dependem do governo e do trabalho do movimento cívico cubano. Prever o que os Castro farão após a visita é um exercício de loucura. Não podemos interromper nosso trabalho reivindicatório. Obama deve ter sensibilidade em relação aos direitos civis, já que nos EUA os negros sofreram muita marginalização. Em Cuba, a discriminação não é pela cor da pele, e sim pela cor do pensamento. Daí, certamente, surgirá empatia. Temos que apostar nisso.”

Alejandro González Raga, jornalista, ex-preso político. Exilado, é porta-voz do Observatório Cubano de Direitos Humanos

(Em depoimento a Priscila Guilayn, Madri)

‘Ainda é uma ditadura’

“Cuba está na moda, Raúl é recebido como herói. Mas continua sendo uma ditadura. Em janeiro e fevereiro passados, foram presas mais de 2.500 pessoas. As Damas de Branco cada vez são mais atacadas. Algumas denunciaram até mesmo abusos sexuais nas prisões. A questão é que os Castro vão mudando, com o objetivo de permanecer no poder. Estão pensando em seus descendentes. Raúl pensa nos filhos, Mariela e Alejandro, e também existe uma casta de generais muito leais, e todos estão se preparando para o futuro. Temos uma ditadura militar e capitalista, que comanda tudo. Para o povo, stalinismo. Sobre Obama, acho que busca passar para a História como o presidente que reatou as relações com Cuba. Vai dar palestras pelo mundo sobre o assunto, mas aos cubanos deixa uma bomba-relógio.”

Hilda Molina, médica exilada na Argentina

(Em depoimento a Janaína Figueiredo, Buenos Aires)

‘Não vai resolver nada’

“A visita de Obama não vai resolver nada. Ele vai encontrar um país que não mudou no tema de direitos humanos. É um momento de muita violência pessoal contra aqueles que pensam diferente do governo.”

Berta Soler, líder do grupo dissidente Damas de Branco

(Em depoimento a Marina Gonçalves)

‘Expectativas exageradas’

“As expectativas geradas com a viagem de Obama a Cuba são exageradas. Há pouca crítica do governo americano em relação à situação dos direitos humanos e à falta de liberdade. Em Cuba, as violações estão incorporadas à Constituição e ao Código Penal, como se fossem um quisto. Sem reformas, o desrespeito continuará diário. Não vejo uma estratégia coerente de Obama em relação aos presos políticos e à oposição pacífica. As vantagens que o governo cubano terá superam significativamente as exigências feitas pelos EUA. Obama não negociou: deu de presente. Como consequência, haverá mudanças econômicas. Mas, democraticamente, não haverá avanços. Das mudanças econômicas, os únicos beneficiários serão os generais que governam Cuba.”

Miguel Sales Figueroa, escritor, exilado desde 1978. Preside, em Madri, a União Liberal Cubana

(Em depoimento a Priscila Guilayn, Madri)

‘Cubanos conhecendo seu país’

“Acredito que a visita será importante, pode acelerar o processo de abertura de Cuba. Em Angola consegui ganhar um bom dinheiro, que vou usar em uma viagem a Varadero, onde passarei três dias com minha família. Paguei 420 CUCs (cerca de R$ 1.800). Vemos hoje que as pessoas estão tendo mais acesso a produtos importantes, a mais dinheiro que os turistas trazem e movimentam a economia. Também vemos que os cubanos estão conseguindo viajar mais, muitos estão pela primeira vez conhecendo seu país e o mundo. Agora o que precisamos é do fim do embargo. Se a visita dele auxiliar no fim do bloqueio, além de uma viagem histórica, será muito relevante para o povo cubano.”

Lirian Biamonte, farmacêutica, passou um período em Angola pelo programa de parcerias médicas de Cuba

(Em depoimento a Henrique Gomes Batista, Havana)

‘Limpeza social durante visita’

“A repressão a dissidentes agora é feita basicamente com visitas da polícia secreta, que avisa que eles não poderão sair de casa nos dias 21 e 22. O governo vem fazendo uma espécie de limpeza social, que acontece sempre que dignatários vão a Cuba. É uma tentativa de limpar o cenário para que os visitantes, jornalistas e chefes de Estado não vejam que existem pessoas tão pobres no país. A visita é coerente e consistente com a estratégia de Washington de abrir canais com o governo. Obama deixará uma mensagem de esperança para o povo cubano, e o governo irá tirar vantagens, como legitimidade internacional.”

Elizardo Sanchez, diretor da Comissão Cubana de Direitos Humanos e Reconciliação Nacional

(Em depoimento a Marina Gonçalves)

‘Uma vitória’

“Há muita expectativa com a possibilidade de atuação das empresas americanas no país, mas a verdade é que o problema econômico de Cuba só será resolvido com o fim do embargo. Agora, com a aproximação, a bola está na quadra do governo cubano, que pode levar Washington a reverter esse cenário. Desde a reaproximação, já houve alguma influência americana para que Cuba reveja a questão dos direitos humanos, mas o tema é mais amplo do que alguns dissidentes presos. O governo já aceitou que o problema existe e que deve ser debatido, e isso foi uma vitória! No entanto, o discurso oficial será a última coisa a mudar, mesmo que na prática mudanças venham a acontecer, ainda que lentamente.”

Karina Galvez, economista, professora e jornalista independente

(Em depoimento a Felipe Benjamin)

‘Debates em comitês’

“Acredito que Barack Obama deva ser recebido com otimismo, por ser um chefe de estado de um país poderoso e que poderá ser pressionado por Cuba para retirar o bloqueio econômico. Os cubanos devem conduzir todas as mudanças que são necessárias para modernizar Cuba, como já temos feito. Temos debatido esta visita nos comitês e nos grupos de defesa do partido para avaliarmos seu impacto.”

Antônio Sigas, aposentado, integrante do Comitê de Defesa da Revolução de Havana Vieja

(Em depoimento a Henrique Gomes Batista, Havana)