O Estado de São Paulo, n. 44701, 07/03/2016. Metrópole, p. A15

Zika revela ciência forte no País e falta de recursos

Giovana Girardi

O caráter único da epidemia de zika – que se espalhou muito rapidamente pelo País levantando a suspeita de ser responsável pelo aumento de casos de microcefalia e outros problemas neurológicos – pode ter pelo menos uma consequência positiva: abriu oportunidade para a ciência brasileira se destacar em responder rapidamente a uma emergência de saúde.

Provavelmente pela primeira vez em torno de um problema biomédico, a comunidade científica nacional foi muito ágil em se articular, fazer parcerias locais e com instituições estrangeiras e redirecionar esforços dos laboratórios para uma nova causa. Mas essa rápida mobilização, apontam líderes de alguns dos principais grupos de pesquisa, ainda não foi seguida por contrapartida de oferta de recursos do governo federal, o que pode ser um entrave em breve para o avanço dos estudos.

“Desde que observamos o aumento nos casos de microcefalia, em outubro, e, a partir do momento em que o Ministério da Saúde decretou a emergência sanitária nacional, em 11 de novembro, a ciência se reorganizou de tal forma que logo começou mostrar evidências muito significativas, que fizeram, por exemplo, o governo mudar sua postura de vigilância e agilizar uma campanha contra o Aedes aegypti”, relata Rodrigo Stabeli, vice-presidente de pesquisa e laboratórios de referência da Fiocruz.

“Vemos cientistas compartilhando dados e materiais, o que mostra que a ciência brasileira tem capacidade de dar respostas ao que talvez seja um dos maiores problemas de saúde no País”, diz. “Por outro lado, desde o começo o governo promete recursos para a pesquisa, mas já se passaram mais de cem dias desde o decreto de emergência nacional e ainda não vimos uma política concisa que possa dar diretriz de financiamento. Não adianta ficar fazendo mais reunião. O País já sabe onde tem de investir em pesquisa. Não tem de haver mais reunião, mas sim investimento.”

 

Queixas. O problema veio à tona em encontro no Recife, na semana passada, que reuniu pesquisadores de todo o País que trabalham no enfrentamento da situação. “O que mais se ouviu é gente se queixando de falta de dinheiro. Existe uma crise, claro, mas temos visto o governo falar em alocação de recursos. Só que ainda não vemos isso chegar às bancadas dos laboratórios. E a ciência agora não pode ficar esperando”, diz o virologista Paolo Zanotto, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador da Rede Zika, força-tarefa paulista.

Em São Paulo, a situação só não é tão dramática porque a Fapesp (agência de fomento à pesquisa do Estado), em dezembro, aprovou em dias a liberação de aditivos para projetos que já estavam em andamento, redirecionando esforços de outras pesquisas. O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação pensa em criar um modelo de fast track, mas isso ainda não vingou.

 

Pacotão. Conforme o Estado apurou, o órgão está planejando, com o Ministério da Saúde e a Casa Civil, lançar um pacotão de editais e linhas de financiamento para agilizar a pesquisa em zika, mas também ainda não há data de lançamento.

Pedro Prata, diretor do Departamento de Ciência e Tecnologia do Ministério da Saúde, afirmou que existe esse plano e reconheceu que é necessário fortalecer as pesquisas em andamento. “Temos condições de ser protagonistas no desenvolvimento científico da área: temos material humano, instituições fortes. Precisamos de fomento.”

Prata disse que amanhã e quarta-feira serão feitas “oficinas de prioridades” com os principais grupos que trabalham com zika no País para que eles façam apresentações e o governo decida quais precisam de fortalecimento e devem receber investimento primeiro. Apenas depois, disse Prata, é que serão lançados os editais para projetos de médio e longo prazo. Cada um deve receber algo em torno de R$ 500 mil a R$ 1 milhão.

 

Também afirmou que a prioridade inicial do governo federal foi investir nas pesquisas de vacina. Foi anunciado repasse para o Instituto Butantã de R$ 100 milhões, mas são para testes da vacina da dengue. O governo confia que será possível transformar a vacina tetravalente (para os quatro sorotipos de dengue) em pentavalente (incluindo o zika). “A vacina teve prioridade porque já protege as pessoas antes mesmo de entendermos melhor o que está acontecendo (na epidemia).”

________________________________________________________________________________________________________

Epidemia mudou rotina de cientistas

Giovana Girardi

“Quais são as maiores dificuldades de pesquisa de zika no momento? O dia só tem 24 horas!” A declaração entre bem-humorada e aflita é do virologista Paolo Zanotto, do Instituto de Ciências Biomédicas da USP. Ele conta que tem dormido em média três horas por noite desde que se observou a epidemia de microcefalia. “Todo mundo que está trabalhando com zika está assim. Sacolejou todo mundo”, afirma.

Para ele, os cientistas se mobilizaram dessa forma porque a crise é inédita. “É só pensar na carga socioeconômica de ter um número grande de crianças com microcefalia. Pode causar uma perturbação na demografia. É um aspecto devastador impactando a forma como a sociedade continua no tempo.”

A mudança de rotina também impactou o laboratório de pesquisa do neurocientista Stevens Rehen, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Instituto D’Or de Pesquisa. Antes da epidemia, eles desenvolviam os, agora famosos, minicérebros, para testar a evolução de outras doenças neuronais. Diante da emergência, redirecionaram os esforços e passaram a analisar se o vírus zika poderia infectar as células-tronco que formam o cérebro.

“Foi um mês de pesquisa. Começamos a trabalhar no carnaval e, quando vimos que tínhamos um bom resultado, escrevemos em 48 horas um paper”, diz Stevens. O trabalho mostrou que, sim, o zika infecta e destrói as células, o que pode ser um caminho para entender sua possível relação com a microcefalia.

 

Ele conta que o esforço está sendo possível porque ainda há uma reserva de investimentos dos últimos dez anos. “Conseguimos formar uma capacidade intelectual instalada e de equipamento. É uma mistura essencial para resposta rápida, mas agora o futuro da pesquisa pode começar a ficar prejudicado.”

____________________________________________________________________________________________________________________

‘Historicamente o Brasil não registrava microcefalia’ Fernando Gomez, vice-ministro de Saúde da Colômbia

Lígia Formenti

Num tom mais cauteloso que o exibido por autoridades sanitárias brasileiras, o vice-ministro de Saúde da Colômbia, Fernando Gomez, diz não haver ainda elementos suficientes para apontar o zika como responsável pelo aumento de casos de microcefalia. “Existe uma relação, mas é preciso fazer mais estudos para se comprovar a causalidade.” Em entrevista ao Estado, Gomez não hesita em dizer que há uma subnotificação histórica de microcefalia no Brasil e afirma que a opção do aborto é importante para as mulheres. Aqui, os principais trechos:

 

O senhor está convencido de que o zika causa microcefalia?

Os dados do Brasil mostram haver uma associação entre zika e microcefalia, mas isso não é suficiente para se estabelecer a causalidade. É necessário esperar outros estudos.

 

Além do zika, o que poderia estar associado a esse aumento?

Acreditamos que historicamente o Brasil não registrava o número de casos de microcefalia que de fato deveria ocorrer. Uma das possibilidades é de que a situação do zika tenha chamado a atenção para um problema que já estava presente, mas que até então não era notado. No Brasil eram informados, em média, 140 casos anuais de microcefalia relacionados a outras causas, número comparativamente bem menor do que o daqui. Registrávamos 150. Brasil e Colômbia têm taxas semelhantes de fertilidade. Se aplicássemos nossos indicadores para o Brasil, o número de casos giraria em torno de 700.

 

O senhor apontaria somente a subnotificação?

Seria importante investigar outras causas, como problemas ambientais e a interação entre enfermidades, por exemplo. Aqui na Colômbia a epidemia de dengue e chikungunya já passou. Aconteceram em épocas distintas. Não sei se o mesmo aconteceu no Brasil. Será que o fato de se ter epidemias simultâneas poderia exacerbar o risco de microcefalia?

 

O Brasil foi precipitado ao fazer essa relação?

Todo o país tem a responsabilidade de vigiar um aumento expressivo de casos. E reportá-lo. Penso que o problema do Brasil não está nas projeções, mas na retrospectiva. Como os números existentes até a epidemia de zika eram subnotificados, não há como estipular qual foi o aumento exato do número de casos pós-epidemia.

 

O senhor está prevendo aumento de abortos em seu país por causa do receio de zika provocar microcefalia nos bebês?

A Colômbia tem um conjunto de regras sobre aborto relativamente progressista. Por isso, é provável que muitas mulheres lancem mão desse direito. Alertamos as mulheres sobre os seus direitos, sobre as possibilidades previstas em lei para a interrupção da gestação, mas não podemos em última instância fazer uma recomendação expressa. A decisão é da mulher e de seu companheiro.

 

Na Colômbia é necessária autorização prévia para interrupção da gravidez? Qualquer médico pode fazer?

Respeitadas as condições determinadas em lei, e aí estão os casos que envolvem o sofrimento psicológico da gestante, ela pode ser feita em qualquer hospital, pelo obstetra.

No Brasil, não há permissão para aborto nesses casos. O País deveria rever suas regras?

Não posso opinar por outro país, mas posso dizer que é uma opção importante para a mulher, para o casal, principalmente frente a uma enfermidade grave, com consequências importantes que terão reflexos por toda a vida. Uma das justificativas mais usadas aqui para interrupção é o risco de sofrimento mental da mulher.

 

Qual a contribuição que o senhor acha que a Colômbia pode trazer para o melhor conhecimento da zika e da microcefalia?

Um dos aspectos mais importantes é estimar a incidência de microcefalia após o surgimento da epidemia. É uma diferença com o Brasil, onde o fenômeno foi descoberto quando estava em curso. Aqui podemos acompanhar desde o início. Estamos contando os casos de zika e observando as gestantes. Caso a caso, semana a semana. Isso nos permitirá estimar com maior rapidez as taxas de incidência da infecção, a relação entre zika e microcefalia e a influência no aumento de Guillain-Barré.

 

Qual é o maior problema na Colômbia relacionado ao zika?

Temos cidades distantes, onde a comunicação não é tão boa. Nosso receio é de que haja casos não diagnosticados, que as grávidas com zika não sejam acompanhadas. Daí, nosso esforço para reduzir os riscos de que isso aconteça. Investimos na informação. E a população está se dando conta. Desde janeiro, a palavra mais buscada pelos colombianos no Google é zika.