Valor econômico, v. 17, n. 4.010, 23/05/2016. Brasil, p. A4

Carvalho deixa Cade e defende redução do número de conselheiros

Presidente diz que órgão precisa de mais recursos e sugere que sejam direcionados para aumentar fiscalização

Por: Juliano Basile

 

Vinícius Carvalho deixa a presidência do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) com mais de meio bilhão de reais em acordos com empresas que confessaram a culpa em casos de cartéis. Segundo ele, esse número poderia ser ainda maior se o orçamento do órgão antitruste fosse elevado em apenas R$ 10 milhões. O montante seria o suficiente para fazer mais buscas e apreensões na sede de empresas e elevar os acordos para R$ 900 milhões anuais.

Carvalho defende uma redução no número de conselheiros com o objetivo de reservar mais verba para o combate a cartéis. Para ele, o plenário do Tribunal do Cade deveria ser diminuído de sete para cinco conselheiros. Com isso, o órgão gastaria menos com julgadores e mais com investigadores.

O presidente advertiu que casos importantes ainda estão em investigação e o futuro comandante do Cade, a ser indicado pelo governo do presidente em exercício Michel Temer, vai comandar o julgamento do cartel do metrô em São Paulo, a denúncia de supostos acordos ilícitos entre operadores de bancos para influenciar na taxa de câmbio e contratos suspeitos envolvendo a Petrobras e a Eletrobras. Com tantos casos de cartéis, as fusões e aquisições estão perdendo importância na pauta do Cade. Elas ocupavam 92% das sessões de julgamento, em 2012, quando Carvalho assumiu a presidência do órgão. Hoje, representam 56%.

O órgão antitruste foi uma espécie de laboratório para as práticas de investigação da Operação Lava-Jato, pois foi lá que foram assinados os primeiros acordos de leniência no país. Mas, no Cade, uma delação sem comprovações não é prova de nada, disse Carvalho. "É necessário balizar a delação com outras provas, com a colaboração de empresas", insistiu.

A seguir os principais pontos da entrevista, concedida em Washington, onde Carvalho participou de evento internacional.

 

Valor:Sua saída do Cade se dá em meio ao começo de um novo governo. Foi possível fazer uma transição?

Vinícius Carvalho: Não tivemos transição, mas há uma agenda para aperfeiçoar a autonomia do Cade. Seria transformar o órgão numa espécie de agência executiva e ter um orçamento adequado para executar o seu planejamento estratégico.

 

Valor:O orçamento atual não é suficiente?

Carvalho: Hoje, o Cade arrecada muito. Somente no ano passado nós obtivemos R$ 528 milhões com acordos com empresas em que elas reconheceram práticas ilícitas. Apenas com taxas (cobradas de empresas que fazem fusões e aquisições), arrecadamos R$ 30 milhões. Mas o orçamento está muito aquém das nossas necessidades. É de apenas R$ 20 milhões. É um absurdo. Se o orçamento fosse um pouco melhor, o efeito seria em progressão geométrica.

 

Valor:Como assim? Com orçamento maior o Cade poderia fazer mais acordos com empresas?

Carvalho: Se eu tivesse 50 técnicos a mais e R$ 10 milhões a mais no orçamento, o Cade faria mais sete ou oito buscas e apreensões por ano, abriria muito mais investigações e arrecadaria uns R$ 800 milhões ou R$ 900 milhões. Hoje, fazemos apenas duas buscas, no máximo três por ano e arrecadamos R$ 528 milhões. As buscas geram acordos e esses acordos geram contribuições. É um ciclo. Mas a situação atual do Cade não é inteligente do ponto de vista fiscal. Eu acho que poderíamos até partir de sete para cinco conselheiros.

 

Valor:Mas se reduzir o número de conselheiros não haverá problema de quórum para votar processos?

Carvalho: Se forem cinco conselheiros e o quórum mínimo for mantido em três, não vai afetar. O que não dá é ter um órgão em que a cabeça é maior do que as pernas. Quando fui conselheiro, eu tinha 150 processos no meu gabinete. Hoje, os conselheiros têm apenas dez processos no gabinete. Essa diminuição de sete para cinco conselheiros permitiria que as vagas de conselheiros e de assessores de gabinete fossem destinadas para a Superintendência-Geral, para melhorar a capacidade de investigação. Ou seja, é uma estratégia para melhorar o fluxo de atividade do Cade e inclusive o tempo médio de análise dos atos de concentração e das condutas anticompetitivas. É claramente uma medida de eficiência, tanto que os conselheiros e o corpo técnico apoiam.

 

Valor:Como fazer para mudar o plenário do Cade?

Carvalho: Para fazer isso precisa mudar a lei. O nosso problema hoje claramente não é de qualidade do corpo técnico, mas de quantidade. O corpo técnico é o grande responsável pelo reconhecimento internacional que o Cade recebeu. Desde 2012, nós ganhamos prêmios internacionais em todos os anos. Somos reconhecidos entre as oito melhores agências de concorrência do mundo. O Cade é muito pouco hierárquico. Nós temos nove pessoas com mandato. Não há nenhuma agência assim no Brasil com procuradores e superintendente com mandato e a participação do Ministério Público com assento no plenário durante os julgamentos. Se posso dizer que construímos algo nos últimos quatro anos é o tipo de dinâmica que funciona bem.

 

Valor:O senhor está terminando o seu mandato, mas há casos importantes para serem julgados.

Carvalho: Há muitos casos de cartel na Superintendência-Geral que ainda não chegaram para julgamento. O caso do cartel do metrô iniciou a onda de combate a cartéis em grandes licitações. Esses cartéis sempre existiram, mas só os casos menores eram descobertos. O caso do metrô é grande. No caso do suposto cartel dos bancos, se houver a comprovação de que o Brasil foi afetado, será paradigmático, pois afeta a economia como um todo. Embora o impacto sobre o consumidor final seja indireto, ele será relevante, caso se configure a conduta ilícita. E há todos os casos relacionados à Operação Lava-Jato e alguns que não são apenas relacionados à Petrobras. Há outros.

 

Valor:Quais são?

Carvalho: Há os casos dos contratos da Petrobras, os da Eletrobras e outras leniências sendo negociadas.

 

Valor:Quais?

Carvalho:Essas não posso falar.

 

Valor:Elas não estão demorando para serem assinadas?

 

Carvalho: Veja, os acordos de leniência são só o começo de uma investigação. Eles não vão a público como regra. O relato sem provas ou evidências não legitima a assinatura de um acordo. No Cade, uma delação premiada sem comprovações não é prova de nada. É necessário balizar a delação com outras provas, com a colaboração de empresas. Quando assinamos o acordo é porque a empresa já trouxe provas para demonstrar o que ela disse. É por isso que, até se ter todo o escopo do processo montado, esse aparato não vem a público. Não é para proteger o signatário da leniência. O objetivo mais importante é proteger a própria investigação.

 

Valor:Quantos acordos vocês estão assinando com empresas por ano?

Carvalho: No ano passado, nós assinamos 58. Temos batido recordes ano após ano com os termos de cessação de conduta (TCCs). Nós fizemos uma mudança e, a partir de 2013, as companhias tiveram que cooperar, pagar uma contribuição em dinheiro e reconhecer a participação na conduta criminosa. Quando me tornei presidente do Cade, em 2012, havíamos arrecadado R$ 40 milhões com acordos. Em 2015, aumentou mais de dez vezes para R$ 528 milhões. E isso ocorreu com as empresas confessando a participação delas.

 

Valor:As fusões e aquisições ainda tomam muito tempo do Cade?

Carvalho: Em 2012, 92% dos julgamentos foram de fusões e aquisições. Hoje, 56% são de fusões e aquisições. Então, há, hoje, claramente, um equilíbrio entre a função repressiva e a preventiva. Mas ainda temos problemas administrativos.

 

Valor:Quais são?

Carvalho: Nós temos um problema sério de recursos humanos. O Cade é a única autarquia que não tem carreira própria. A rotatividade acaba sendo muito elevada por causa disso. E além disso precisamos de mais gente.

 

Valor:Quantas pessoas o Cade tem?

Carvalho: Temos entre 80 e 90 técnicos responsáveis por lidar com processos. Portugal, que é dez vezes menor do que o Brasil, tem 60. Na União Europeia, num caso de conduta unilateral complexo há cinco pessoas só para cuidar do caso. No Brasil, o mesmo técnico que cuida de um caso grande, envolvendo, por exemplo, o Google, tem que cuidar de mais dez casos.

 

Valor:Nunca se falou tanto de cartel no Brasil. O Cade contribuiu para esse movimento que acabou levando a megaoperações, como a Lava-Jato?

Carvalho: Os mecanismos que a lei anticorrupção criou, como o acordo de leniência, a lista dos ilícitos e a forma de punição às empresas, têm uma raiz muito forte na lei de defesa da concorrência. Isso criou para nós uma capacidade de interação com a lei anticorrupção que não é só procedimental no sentido de compartilhar investigações com escopo parecido. Isso permitiu o compartilhamento substancial em torno das estratégias dos entendimentos sobre cada uma das condutas que envolvem a lei anticorrupção e a lei de defesa da concorrência. Acho que há parceria institucional muito frutífera nessa área. A aplicação da lei anticorrupção com as suas especificidades pode olhar para o que foi feito nos últimos anos na defesa da concorrência.

 

Valor:O Cade foi o pai desse movimento ou o laboratório para que isso tudo ocorresse?

Carvalho: A defesa da concorrência é laboratório para muita coisa. Foi lá que começaram as estratégias relacionadas a colaborações de pessoas que viram condutas ilegais, não participaram de ilícitos, mas poderiam delatar. Se criou um ambiente para que as pessoas possam detalhar algo ilícito e sejam premiadas por isso. Isso não faz parte da cultura brasileira. Mas foi possível criar esse ambiente. A defesa da concorrência permitiu premiar pessoas que relataram condutas. Isso foi experimentado no Brasil na defesa da concorrência antes de outras áreas. A leniência nasceu no Cade, no Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência.

 

Valor:Com os efeitos da Operação Lava-Jato, os empresários presos e acusados, acha que haverá menos cartéis no Brasil?

Carvalho: Não tenho dúvida. Mas isso não começou com a Lava-Jato. Foi quando começamos a priorizar casos de cartéis em licitações. A sensação que a gente tem é que havia uma cultura de cartel em licitações. Muitos desses casos envolvem corrupção. Eles contam com apoio quase consultivo de agentes públicos. Uma condição muito importante para os cartéis sobreviverem ou se estenderem no tempo é a estabilidade do acordo. Então, percebemos que eles necessitavam da cooptação de agentes públicos para ter longa duração. O que nós fizemos diante desse cenário? Assinamos um acordo com a Controladoria-Geral da União (CGU) para o compartilhamento de informações sobre cartéis em licitações no Brasil. Nós criamos uma unidade de inteligência para fazer ofícios em cartéis em licitações e fizemos busca e apreensão com base nessas investigações.

Eu não tenho dúvidas de que essas investigações são essenciais para aumentar o número de leniências. Ninguém faz leniência porque se arrepende, mas porque têm medo de serem identificadas, descobertas. Se o órgão de defesa da concorrência só depender das leniências para fazer as investigações, elas vão sumir.

 

Valor:As empresas vão continuar colaborando com o Cade para revelar crimes?

Carvalho: Eu acho que conseguimos criar uma política de defesa da concorrência voltada para dar incentivos à colaboração das empresas. Notamos isso pelo programa de "compliance". O importante é perceber que o "compliance" não é apenas uma lista do que se pode e do que não se pode fazer. Ele envolve uma transformação na cultura da empresa. E essa transformação tem que ter respaldo em termos de estrutura da governança. Então, muito dificilmente você terá uma empresa em que o "compliance" funciona sem uma estrutura de governança transparente, sem regras para que os acionistas possam tomar as decisões. O "compliance" envolve um novo padrão na cultura das empresas e em suas estruturas. Notamos que é um movimento no Brasil, pois as empresas que fazem "compliance" e identificam problemas internos nos procuram para fazer acordos de leniência. Isso em mudado a cultura e poderá ter impacto nas relações entre empresas e o próprio Estado.

 

Valor:Essa cultura está forte mesmo ou vamos continuar vivendo na fase de vigiar e punir?

Carvalho: Espero que a gente supere essa fase de vigiar e punir rapidamente. Ela deve estar presente, pois sem o porrete não se pode dar a cenoura. Mas é preciso mudar a relação das empresas com o Estado. Não dá mais para se ficar num modelo em que a estrutura de incentivos é toda voltada para a cooptação e que, no fim, incentiva a própria corrupção. Se não, vamos punir, punir, punir e os casos vão continuar surgindo.

 

Valor:Quem será seu sucessor?

Carvalho: Não sei. Meu mandato está no fim. Se quiserem me ouvir, terei toda a disposição para contribuir para que a política de defesa da concorrência continue avançando.