Valor econômico, v. 17, n. 4009, 20/05/2016. Especial, p. A14

Moraes descarta rever demarcações de terras indígenas

Novo ministro da Justiça terá como prioridade fiscalizar fronteiras e combater corrupção

Por: Letícia Casado / Carolina Oms

 

Recém-empossado ministro da Justiça no governo de Michel Temer, o ex-secretário de Segurança Pública de São Paulo, Alexandre de Moraes, disse ao Valor que não pretende fazer revisão na demarcação de terras indígenas. As prioridades do ministério serão afiscalização das fronteiras, a redução do número de homicídios e o combate à corrupção, afirmou.

"Eu não falei em momento algum de revisão de qualquer demarcação indígena. Nem de possibilidade. O que eu disse foi que todas as secretarias que eu assumo, e agora no ministério, todas as portarias dos últimos três meses - independentemente de ser indígena ou administrativa -, a gente sempre analisa. Não há nenhuma intenção de revogar nenhuma demarcação de terras indígenas. Nenhuma", garantiu o ministro.

Em entrevista ao jornal "Folha de S. Paulo" no início da semana, Moraes não descartou rever as últimas demarcações. A declaração gerou protestos de indígenas e especialistas disseram que a medida seria inconstitucional, porque somente poderia ser adotada caso fosse comprovado vício nos processos. Muitas das ações se arrastavam há anos e a Fundação Nacional do Índio (Funai) diz que elas já haviam sido discutidas.

Próximo do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), com quem trabalhou em diferentes momentos nos últimos 14 anos, Moraes levou para o ministério uma das bandeiras tucanas: a mudança na fiscalização das fronteiras. A pauta foi defendida pelas principais lideranças do partido - Alckmin, o agora ministro das Relações Exteriores José Serra e o senador Aécio Neves (MG).

A atuação das forças de segurança nas fronteiras será repensada em um plano de inteligência elaborado com os ministérios das Relações Exteriores, da Defesa, liderado por Raul Jungmann, e pelo Gabinete de Segurança Institucional, do general Sérgio Etchegoyen.

Eles ainda não elaboraram um projeto, mas conversaram sobre o assunto, disse o ministro da Justiça. Em seu discurso de posse no Itamaraty, Serra defendeu mudanças na proteção das fronteiras brasileiras, as quais chamou de "lugar geométrico do desenvolvimento do crime organizado" para alimentar contrabando.

Cerca de 80% da droga consumida no Brasil não entra pela floresta amazônica, mas a maioria adentra o país pela fronteira com o Paraguai, disse Moraes. Reduzir o volume de entorpecentes "depende de atuação conjunta com os países vizinhos e nisso o Itamaraty pode auxiliar", afirmou.

Moraes disse que o Brasil tem condições de dialogar com os países para liderar o processo. "A posição do Brasil sempre foi de bom relacionamento e integração, até porque os vizinhos querem um relacionamento para o combate [ao tráfico. O que faltava era vontade política."

A maior fiscalização nas fronteiras deve ser complementada por um plano nacional para redução de homicídios elaborado em conjunto com as secretarias de segurança pública dos Estados "para a atuação conjunta principalmente na questão de troca de informação", disse Moraes.

O ministro deve receber todos os secretários de segurança pública do país para uma reunião no dia 31 de maio, em Brasília, para discutir "uma linha a mais de execução" dentro da estrutura já montada no ministério.

Ele pretende levar políticas implementadas na segurança pública de São Paulo para combater o crime nacionalmente. Moraes diz que o número de homícidios no Estado caiu nos últimos anos e que, enquanto secretário de segurança pública - cargo que ocupou desde o começo do ano passado -, conheceu projetos que podem ser replicados, e citou iniciativas de combate aplicadas em Espírito Santo, Goiás e Pernambuco.

"A segurança pública é questão do país, não apenas do Estado, mas a União tem o dever de coordenação", afirmou. Ele diz que aproveitará os centros de comando integrado criados pelo governo Dilma Rousseff e que serviram de modelo para a gestão anterior, mas que agora a organização da política de combate à criminalidade será feita de outra forma. "Não é possível quetenhamos 50 mil homicídios ao ano", criticou Moraes.

O Atlas da Violência divulgado em março deste ano mostra que o Brasil registrou 59.627 homicídios em 2014, o maior número já registrado em território nacional. A pesquisa é feita pelos Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o Forum Brasileiro de Segurança Pública, com base em dados do Ministério da Saúde.

Desde que seu nome foi anunciado para a Justiça, Moraes foi diversas vezes questionado sobre a Operação Lava-Jato e tem reafirmado que não vai impedir o avanço das investigações. Ele defendeu as decisões tomadas pelo judiciário na operação: "Quem decreta prisão preventiva? É o poder judiciário. Não vejo problema nas preventivas, mas se houvesse, o Tribunal Regional Federal, o Superior Tribunal de Justiça ou o Supremo Tribunal Federal teriam revertido a decisão. Não foi detectado nenhum abuso deautoridade, ningém falou que a prisão é ilegal".

O ministro da Justiça também reafirmou sua intenção de manter o diretor-geral da Polícia Federal no cargo, Leandro Daiello, "até quando ele quiser". Uma mudança no diretor-geral poderia, por exemplo, levar a mudanças nas superintendências da PF e nas equipes de delegados que participam das operações, inclusive a Lava-Jato. Moraes já fez uma primeira reunião com a cúpula da PF.

Questionado sobre como vê os projetos do Congresso para alterar a lei da colaboração premiada, Moraes disse que o assunto "não é pauta do governo".

No começo da semana, Moraes foi desautorizado pelo presidente interino Michel Temer por declarações dadas ao jornal Folha de S.Paulo em relação à escolha do procurador-geral da República. Ele disse que não houve "ruído" com Temer.

No final de 2014, o novo ministro da Justiça defendeu Eduardo Cunha (PMDB-RJ), presidente afastado da Câmara dos Deputados, em uma ação sobre uso de documento falso em processo do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro. Cunha foi absolvido.

"Fui promotor por dez anos e advogado por quatro. Investigava improbidade administrativa. E investigava político, senador, deputado. Também defendi vários políticos. Eles nao serão prejudicados ou beneficiados porque sou ministro", afirmou Moraes.

Em São Paulo, Moraes autorizou atos de reintegração de posse sem mandado judicial e foi criticado pelos movimentos pelo excessivo da violência pela Polícia Militar. Ele diz que a atuação ocorreu dentro da lei e não descarta seu uso nacionalmente.

"Não sou eu quem faço a lei. Isso se chama auto tutela administrativa e existe em todas as democracias ocidentais."

Segundo Mores, o poder público pode optar pela saída dos manifestantes por via judicial ou por decisão própria. "A União já faz isso há muito tempo, sempre fez e vai continuar fazendo. É o órgão que tem seu prédio invadido que decide, se pede força policial ou se entra na Justiça", disse.

A chegada de Moraes à Justiça preocupou movimentos sociais contrários ao governo interino do presidente Michel Temer. Eles temem uma escalada da violência policial contra manifestações e o uso da lei que tipifica o crime de terrorismo para criminalizar movimentos sociais e manifestações populares. O ministro, no entanto, garante que "de forma alguma" a lei será usada contra manifestações, mas somente atos de terrorismo.

Senadores relacionados:

Órgãos relacionados:

_______________________________________________________________________________________________________De saída, presidente da Funai vê retrocesso com Temer

Por: Ciro Barros

 

No apagar das luzes do último dia 12, enquanto as atenções estavam voltadas para o discurso da recém-afastada presidente Dilma Rousseff, o presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), João Pedro Gonçalves da Costa, 63 anos, assinava às pressas a última delimitação de terras indígenas da gestão petista, a TI Dourados-Amambaí Peguá I, no Mato Grosso do Sul.

Costa, que assumiu a pasta em junho do ano passado, deixará o cargo tendo delimitado 12 terras indígenas, nove somente nos últimos dois meses e três no dia do afastamento da presidente. O ex-deputado estadual e ex-suplente de senador pelo PT do Amazonas se mostrou preocupado com possíveis retrocessos no governo interino de Michel Temer. “Esse governo não tem DNA para ter uma relação sincera e reta com os movimentos populares". Sobre Alexandre de Moraes, atual ministro da Justiça, a quem a Funai está subordinada, afirmou: “Tem uma vida como advogado ligado a causas do crime”. Até a publicação desta entrevista, Costa não havia sido exonerado.

Pergunta: O senhor vai deixar a presidência da Funai com o afastamento da presidente Dilma?

João Pedro Gonçalves da Costa: Esse processo político alcança todo o governo. Há uma ruptura e eu vou sair. Não tem como ser presidente da Funai no governo Temer.

Pergunta: Como devem ficar as pautas indígenas no governo interino?

Costa: Eu tenho muita preocupação. Saio com um misto de satisfação porque conseguimos montar uma equipe e trabalhamos bem na Funai. Também fico satisfeito na relação com os povos indígenas. Agora há um impedimento concreto nessa relação de trabalho e compromisso com a pauta indigenista, por isso temos que continuar fazendo resistência, e eu vou continuar, agora mais do que nunca. O que está se configurando é um governo que não tem DNA de ter uma relação sincera e reta com os movimentos populares, com a esquerda. Um governo para defender a agenda dos povos indígenas tem que ter muito compromisso. E está se desenhando que o secretário de Segurança de São Paulo, novo ministro da Justiça, um secretário que tem uma vida como advogado ligado a causas do crime.

Pergunta: O governo Dilma também foi bastante criticado em relação às pautas indígenas.

Costa: Criticado e justo, né? Porque como a Dilma vem da esquerda, há uma expectativa maior. Mas com toda a crítica, ela homologou mais de 1 milhão de hectares de terras indígenas.

Pergunta: Mas por que foi o governo que menos homologou terras indígenas desde a ditadura?

Costa: Tem dois aspectos que precisam ser analisados. Primeiro porque, na Justiça, nós temos um corte histórico desde o debate no STF da demarcação de Raposa Serra do Sol. De lá saiu uma premissa que fortaleceu a Justiça, que foi o marco temporal. Isso impôs lentidão aos procedimentos. Desde que se levantou o marco temporal no STF, ele virou jurisprudência nas várias instâncias da Justiça. Então, um juiz lá na ponta, por exemplo, suspendia o processo de demarcação com base nisso. O segundo aspecto é que a própria composição do governo ao centro impedia as demarcações e fazia com que as terras fossem sendo travadas politicamente. Você vê que a Kátia Abreu se tornou uma ministra com muita influência dentro do governo. E o Congresso com todos os seus movimentos internos, como a eleição do Eduardo Cunha em 2015, trouxe uma agenda extremamente conservadora. A PEC 215, assim como a CPI da Funai e do Incra surgiram nesse cenário.

Pergunta: A impressão que dá é que, só quando o governo percebeu que estava sem apoio no Congresso e que o impeachment já era realidade, as demarcações avançaram.

Costa: Acho que a conjuntura empurrou para isso, mas não foi por isso. Aqui na Funai nós tínhamos nos preparado para publicar relatórios em abril, e já estávamos vindo numa mobilização grande. Realizamos a primeira Conferência Nacional de Política Indigenista, instalamos o Conselho Nacional de Política Indigenista em abril. Claro que, quando você se depara com essa possibilidade iminente que se materializou do fim do governo, falamos: “Vamos correr com isso”. Nós corremos, mas não teve essa coisa de “só agora”. Com a iminência do final do governo, nós demos uma acelerada nesses atos. Ainda bem! Nós não temos que reclamar do que está saindo, porque é fruto de trabalhos técnicos, e não têm absolutamente nenhum arranjo.

Pergunta: Por que a pauta indígena é tão condicionada ao arranjo de forças políticas?

Costa: Não tenho nenhuma dúvida que pelo formato do Estado brasileiro nós vamos ter sempre esse perfil. Enquanto não houver reforma política teremos sempre essas forças contrárias próximas da pauta indígena. Além disso, a Funai, ligada ao Ministério da Justiça, vai estar sempre sob influência do titular do ministério, e isso pode e vai se refletir na agenda da Funai. Mas a pauta dos povos indígenas continua atual. Temos 1 milhão de índios que precisam de políticas públicas que fortaleçam sua autonomia.

Pergunta: Qual o papel que a Funai deveria adotar?

Costa: Primeiro é preciso fazer um debate sobre o tamanho e a estrutura do órgão. E temos uma agenda grande sobre a gestão de terras indígenas. É um grande desafio. Passa-se ao público um discurso que não é o discurso dos povos indígenas, de que tem muita terra para pouco índio. Precisamos desmistificar esse equívoco, e o Estado brasileiro precisa compreender que precisamos demarcar ainda muitas terras. No Nor- deste, por exemplo, você tem povos com 6 mil pessoas morando em pequenas cidades sem o reconhecimento da tradicionalidade de seus territórios.

Pergunta: O Executivo, pelo menos na execução orçamentária cada vez menor da Funai, não esteve tão comprometido assim com a pauta indígena?

Costa: O orçamento foi cortado para todos. Nós precisamos brigar por mais recursos. Tem dois anos de crise concreta na economia brasileira, e nós sofremos bastante com esses cortes do orçamento. Pergunta: Qual foi o impacto? Costa: Primeiro, o orçamento de hoje é o menor dos últimos quatro anos. Em 2015, nós executamos R$ 145 milhões. E o orçamento que saiu do Congresso Nacional nesse ano foi R$ 5 milhões menor do que tínhamos executado no ano passado. Para fazermos uma agenda digna, precisamos ter mais técnicos, fazer uma reestruturação, ter outro orçamento.

Pergunta: Quanto pesa o contingenciamento de verbas?

Costa: Se reflete na diminuição das ações, e de todas elas. Atribuo essa situação à crise econômica, e não ao embate de forças.

Pergunta: Mas o quadro de servidores não é insuficiente?

Costa: Estamos fazendo o concurso público em junho e vamos ter mais 300 vagas abertas. É suficiente? Não. Precisamos fazer mais uns três concursos para repor a força de trabalho e a nossa presença. Do final do ano para cá, mais de 500 servidores estão aptos à aposentadoria. Precisamos repor, assim como precisamos demarcar mais terras, o que exige uma presença maior da Funai.

Pergunta: Por que existem ainda 180 terras indígenas necessitando de identificação?

Costa: Muita coisa emperrou por conta da judicialização dos trabalhos da Funai. Depois do marco tem- poral, muitos trabalhos foram suspensos administrativamente, e ninguém consegue ir a campo porque, por exemplo, um juiz de Mato Grosso do Sul decidiu que não se pode fazer os procedimentos fundiários. A Funai não parou, mas nós tivemos muita dificuldade de concluir trabalhos nas terras indígenas.

Pergunta: A PEC 215 pode representar o fim da Funai?

Costa: Penso que não. Se votada no plenário, produz um grande retrocesso nas conquistas indígenas e no que foi pactuado na Constituição de 1988. Agora, não se pode negar a capacidade de mobilização, e os povos indígenas não estão sozinhos. Vai ter muito enfrentamento para se materializar a PEC 215. Acredito que ela não passe nas duas casas mesmo com toda a força que tem a direita representada por ruralistas e pelo agronegócio.

Pergunta: A CPI da Funai e do Incra é uma tentativa de desmoralizar esses órgãos?

Costa: A CPI vai nesse sentido, sim, de constranger. Minha leitura é que essa CPI vem para viabilizar a PEC 215. Ela faz um diagnóstico e tenta desqualificar os antropólogos, constranger os povos indígenas, os trabalhos da Funai, com a estratégia de criar um clima antiindígena e puxar para o Congresso a questão, o que é um absurdo. Você imagine uns parlamentares discutindo terra indígena a partir de sua ancestralidade, a partir de sua historicidade? O Congresso não tem perfil para fazer uma discussão e garantir a terra indígena. É inaceitável essa postura contra a Funai.