Correio braziliense, n. 19362, 30/05/2016. Brasil, p. 4

Flores à justiça pelo fim da cultura do estupro

Homens, mulheres e crianças marcharam ontem, em Brasília, para pedir um basta à violência contra a mulher. Manifestantes derrubaram grade de isolamento e pintaram os pilares do Supremo de tinta vermelha

Por: Leonardo Fernandes

 

Em protesto contra a cultura do estupro, um grupo de manifestantes, formado por mulheres, homens e crianças, promoveu ontem em Brasília a Marcha das Flores. Durante uma caminhada de quase 2 quilômetros entre o Museu da República e a Praça dos Três Poderes, participantes exibiram faixas com dizeres como “A culpa nunca é da vítima”; “30 contra todas” e “Estupro fere o corpo e mata a alma”. Segundo a Polícia Militar, cerca de 1,5 mil pessoas participaram do protesto motivado pelo estupro de uma jovem de 16 anos, violentada por mais de 30 homens no Rio de Janeiro.

A apresentação do grupo de percussão Batalá marcou o início do ato no Museu. Em seguida, manifestantes fizeram uma contagem regressiva a partir do número 33 chegando a “nenhum”, simbolizando a desejada eliminação da violência contra as mulheres. De acordo com uma das organizadoras, Keka Bagno, a intenção é lutar para que os crimes contra a mulher não fiquem impunes. “Também queremos chamar a atenção das autoridades e da sociedade sobre a cultura do abuso sexual, que chegou à marca de um estupro a cada 11 minutos no Brasil”, comentou Keka.

Outro objetivo da marcha é dar força às mulheres para que elas rompam o silêncio e denunciem. “Sabemos que, para mudar isso, devemos começar desde cedo, na educação, e avançar no âmbito profissional, equiparando salários entre homens e mulheres e, principalmente, nos espaços políticos, os quais as mulheres também devem ocupar”, acrescentou Keka. Presente ao evento, a deputada federal Érika Kokay (PT-DF) mostrou indignação. “Nós não somos objeto, não somos propriedade. Vivemos em um país que nos desumaniza ao notificar por volta de 50 mil estupros por ano, quando se calcula cerca de meio milhão. Isso significa que nós, mulheres, não somos reconhecidas enquanto seres humanos”, afirmou a deputada.

Érika também criticou a reforma ministerial do presidente em exercício, Michel Temer, por não ter nenhuma mulher no primeiro escalão e por ter extinguido a pasta das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos. “Se temos um governo que coloca no subsolo a luta pelos direitos das mulheres, vemos que não é prioridade a desumanização de mais de 50% da população brasileira. Precisamos romper uma desumanização simbólica, que se expressa no estupro, na violência doméstica, na violência sexual, para que nós possamos eliminar a violência em que sempre as mortes literais são precedidas das mortes simbólicas.”

No percurso até a Estátua da Justiça, em frente ao Supremo Tribunal Federal (STF), manifestantes entoaram vários gritos pelo amor e respeito às mulheres e contra o machismo, o racismo e a homofobia. Houve palavras de ordem também contra Michel Temer, o deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ) e o ministro do STF Gilmar Mendes.

 

Transformação

A presença de muitos homens e famílias chamou a atenção. O servidor público Daniel Castro, 35 anos, afirmou que os homens precisam identificar como estão sendo machistas no dia a dia e mudar isso. “Assim como o racismo, o machismo mata. Nós, homens, temos uma responsabilidade tremenda de nos transformar. Esta sociedade tem que se transformar porque é impossível viver com amor, com felicidade, criar nossos filhos e filhas em um ambiente onde acontece esse nível de barbaridade.”

Ao chegar na Praça dos Três Poderes, os presentes se aglomeraram em frente à cerca posta ao redor do STF. Após uma primeira tentativa de arremessar as flores para alcançar os pés da estátua, a multidão empurrou a grade e ocupou toda a frente do prédio. A iniciativa gerou um pequeno tumulto. A PM chegou a usar gás de pimenta, mas, logo em seguida, com a ajuda dos próprios manifestantes, a situação se acalmou. Ali, aos pés da Estátua da Justiça, uma nova contagem regressiva a partir de 33 emocionou os presentes que colocaram flores ao redor e no colo do monumento. Na marquise do STF, um varal com 33 calcinhas manchadas de vermelho foi estendido e mãos pintaram os pilares do prédio da Suprema Corte. Ao final, os presentes se ajoelharam de mãos dadas e entoaram o Hino Nacional.

 

Frases

“Queremos chamar a atenção das autoridades e da sociedade sobre a cultura do abuso sexual, que chegou à marca de um estupro a cada 11 minutos no Brasil”

Keka Bagno, organizadora do evento

 

“Precisamos romper uma desumanização simbólica, que se expressa no estupro, na violência doméstica, na violência sexual, para que nós possamos eliminar a violência em que sempre as mortes literais são precedidas das mortes simbólicas”

Érika Kokay, deputada federal (PT-DF)

 

“Nós, homens, temos uma responsabilidade tremenda de nos transformar. Essa sociedade tem que se transformar porque é impossível viver com amor, com felicidade, criar nossos filhos e filhas em um ambiente onde acontece esse nível de barbaridade.”

Daniel Castro, servidor público