Gasto ineficiente

 
08/08/2016
 

Na desmontagem do regime de relativo equilíbrio fiscal brasileiro, a partir do fim do segundo mandato de Lula e concluída com Dilma, era certo que, cedo ou tarde, a política do “novo marco macroeconômico” desestruturaria programas sociais. Por ironia, o “novo marco” era colocado a serviço dos pobres, no discurso político-ideológico. Funcionou ao contrário, como previsto.

As famílias de renda mais baixa seriam atingidas pela subida da inflação — e ela ocorreu — e também pelo desemprego decorrente da recessão causada pela própria política de gastos públicos sem medida, causa da retração nos investimentos. Diante da escalada de gastos, a solvência do Tesouro foi, e está, posta em dúvida, circunstância em que todos se retraem. Investidores e consumidores, estes açoitados por uma taxa de desemprego que entrou na faixa dos dois dígitos.

O programa Ciência sem Fronteiras, uma das fontes prediletas de inspiração para os discursos da campanha à reeleição de Dilma, quase sempre em tom demagógico, também não resistiu à tempestade.

O governo Michel Temer resolveu suspendê-lo, por motivos claros e irrefutáveis: muito dinheiro gasto para um retorno questionável, e num momento em que os campi das universidades federais estão próximos à bancarrota, com laboratórios em dificuldades e programas importantes de pós-graduação à míngua.

Crise fiscal implica fazerem-se escolhas. E a melhor, no caso, é suspender o CsF, no qual, desde 2011, foram gastos R$ 8,4 bilhões em mais de 100 mil bolsas no exterior, de graduação e pós, em universidades de 54 países.

Como era norma nos governos do PT, não se conhece qualquer avaliação séria do CsF. Há, porém, indicações de que o retorno do programa para a sociedade — quem paga esta e todas as demais despesas do Estado — não foi grande coisa. Logo na primeira fase do programa, surgiram relatos sobre alunos bolsistas sem proficiência na língua do país onde fora estudar. Um desatino, mas tudo era válido em nome da “justiça social”.

Foi criticado, também, que o CsF concedesse até bolsas para graduação, quando o país necessita é de pós-graduados. A proporção de 80% dos bolsistas foi para a graduação.

Entre as fragilidades do CsF também está a própria qualidade de ensino das universidades para as quais se destinou a grande maioria dos bolsistas.

Segundo a “Folha de S.Paulo”, menos de 4% dos alunos se dirigiram a alguma das 25 melhores universidades do mundo, na avaliação do ranking THE (Times Higher Education), britânico. Muito pouco, para tanto dinheiro.

O momento de séria escassez de recursos é outro fator decisivo para o corte do CsF. Cada bolsista, segundo o ministro da Educação, custou aos cofres públicos R$ 105 mil por ano.

 

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Exemplo de inclusão

 
08/08/2016
Felipe Santa Cruz

 

O fim da concessão de bolsas no exterior para os estudantes de graduação no âmbito do projeto Ciência sem Fronteiras (CsF) representa séria ameaça para uma das mais importantes ações de aprofundamento educacional do mundo: a formação e capacitação de pessoal altamente qualificado em universidades, instituições de educação profissional e tecnológica, e centros de pesquisa estrangeiros de excelência. O projeto inspirou-se em exemplos de países emergentes, como Índia, China e Coreia do Sul, que mantêm milhares de estudantes no exterior. Em 2011, por exemplo, ano da criação do CsF, só a China tinha 80 mil doutorandos nos Estados Unidos. A mobilidade científica internacional foi estratégica para que os chineses mudassem o perfil do país e passassem a ocupar um novo patamar no mundo.

O critério para o acesso ao CsF também estabeleceu um paradigma na formação de quadros brasileiros no exterior. A adoção da nota do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) permitiu que brasileiros outrora alijados pudessem vivenciar e compartilhar a internacionalização acadêmica. Segundo dados do Ministério da Educação, do total que participou do CsF 26,4% são negros, 25% são jovens de famílias com renda de até três salários mínimos, e mais da metade, famílias com renda de até seis salários mínimos. Ou seja, trata-se de um exemplo palpável de inclusão social. Recentemente, a Comissão de Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e Informática (CCT) do Senado recomendou a continuidade da oferta de bolsas de estudos para estudantes da graduação no CsF. De acordo com os senadores membros da comissão, a maior parte dos bolsistas proveio de instituições públicas, e um montante considerável dos estudantes das universidades públicas é oriundo de famílias de baixa renda. O relatório conclui: “Se a gratuidade do ensino é assegurada constitucionalmente, no caso das bolsas, cumpre direcioná-las, particularmente na graduação, aos estudantes que não poderiam financiar, no todo ou parcialmente, os custos dos estudos no exterior.”

Evidentemente, no mundo acadêmico exemplos não são imediatos, levam tempo e exigem muita diligência. É o caso dos brasileiros Elisa Miotto e Leonardo Barros Venâncio, bolsistas de graduação-sanduíche da Tsinghua University, na China, que obtiveram ano passado segundo lugar em concurso internacional sobre o combate à cólera e outras doenças que afetam o Haiti. Pesquisa de valor inestimável. Graças ao CsF, em 2015 havia 5.425 estudantes brasileiros nas 100 melhores universidades do mundo. Desacreditar o empenho dos bolsistas e sobretudo o seu potencial de retorno para a formação acadêmica no Brasil é desacreditar no próprio potencial da educação, que não pode ser medido unicamente por cifras orçamentárias, mas principalmente pelo retorno científico, social e humanitário.

 

O globo, n. 30317, 08/08/2016. Opnião, p. 12