Cunha, uma biografia autorizada (pela PF)

 

23/10/2016
Eduardo Militão

 

No dia 12 de março de 2015, ficou uma dúvida a respeito de uma declaração do então presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), quando respondeu ao deputado Delegado Waldir (PSDB-GO) sobre possuir dinheiro no exterior. O peemedebista havia garantido na CPI da Petrobras que não tinha recebido propina relacionada à petroleira ou às investigações da Operação Lava-Jato. “Não tenho qualquer tipo de conta em qualquer lugar que não seja a conta que está declarada no meu Imposto de Renda”, afirmou Cunha aos parlamentares.

A dúvida era se eventualmente ele teria alguma empresa offshore, que poderia, essa sim, ser dona de uma conta bancária controlada por ele. O Correio abordou Cunha no anexo II da Câmara, entre o saguão e uma rampa que dá acesso ao plenário da Casa, depois que o então deputado acabava de sair de uma entrevista com outros jornalistas sem responder a essa pergunta adicional: “Presidente, o senhor mantém algum recurso no exterior em offshore?”

Cunha foi mais categórico.

– Não, eu não tenho nada. Se eu não respondi, me perdoe. Foi a ânsia de querer completar tudo. Não tenho nenhum recurso, não sou sócio de nenhuma empresa. Tudo o que eu tenho está no meu imposto de renda. Se eu não respondi a essa pergunta lá ou passou batido, eu peço desculpas, mas é claro e textual. Tudo o que eu tenho está no meu Imposto de Renda, declarado à Justiça Eleitoral. Não sou sócio de nenhuma offshore, não mantenho conta no exterior de nenhuma natureza.

Um mês depois, o Ministério Público da Suíça enviava ao Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI), do Ministério da Justiça, papéis com as contas de Cunha em nome das offshores Orion SP, Triumph e Netherton, além de uma outra relacionada à sua esposa. As informações vieram a público no segundo semestre, quando o castelo de poder de Eduardo Cunha começava a ruir, até culminar com seu afastamento do mandato, sua cassação e prisão em 2016, por ordem do juiz Sérgio Moro.

Fora do poder, o ex-deputado prometeu escrever um livro em que contaria os bastidores do impeachment de Dilma Rousseff, a ex-presidente que ele ajudou a derrubar em meio à tormenta que também sofria. A partir de investigações da Operação Lava-Jato, com informações obtidas com a Polícia Federal, o Ministério Público, advogados e o próprio Cunha, o Correio escreve os primeiros capítulos de um livro sobre o poder e os negócios do ex-presidente da Câmara.

 

Capítulo 1

“Agora é comigo”

O dissabor já durava três anos. Em 2010, Fernando Antônio Falcão Soares, o “Fernando Baiano”, estava numa encruzilhada cada vez mais apertada. Recebia cobranças de funcionários da Petrobras insatisfeitos. E não era culpa dele. Mas da falta de compromisso de Júlio Gerin de Almeida Camargo, um profissional que fazia as vezes de executivo de empreiteira, mas, por ter muitas ligações com profissionais japoneses e do Oriente extremo, aproveitava e fechava negócios aqui e ali obtendo comissões.

No caso, Júlio acertou uma grande empreitada em favor de sul-coreanos em 2006 e 2007. Conseguiu que o estaleiro Samsung, em parceria com a Mitsui, negociasse dois navios com a Petrobras, as sondas Vitória 10.000 e Petrobras 10.000. A bolada chegava a US$ 1,2 bilhão. Para isso, Júlio pediu um adicional em suas comissões a fim de “agradar” um funcionário da petroleira em particular, que foi responsável por viabilizar a empreitada: o então diretor de Internacional Nestor Cerveró. Pai de um ator de teatro e acometido por uma espécie de ptose, que faz a pálpebra cair sobre seu olho esquerdo, Cerveró recomendou que os pagamentos fossem feitos para Fernando Baiano, a fim de não chamar a atenção.

Como no mundo dos negócios, lícitos ou não, tudo tem que ser organizado, só faltou o carnê. Júlio Camargo acertou pagar as propinas aos parceiros à medida que ia recebendo seus US$ 40 milhões de “comissões turbinadas” da Samsung. Mas ele se desentendeu com os sul-coreanos, e os jetons deixaram de ser pagos. Sem dinheiro, Júlio Camargo foi à Justiça e passou a enrolar Baiano no pagamento da corrupção a partir de 2007.

Três anos sem receber nada dos US$ 16 milhões que faltavam, Baiano — que, apesar do apelido, nasceu no estado de Alagoas — desistiu e apelou para Eduardo Cunha. Os dois haviam se conhecido em 2009 num café da manhã no hotel Marriott, no Rio de Janeiro, por intermédio do deputado Alexandre Santos (ex-PSDB e hoje PMDB-RJ), a quem Baiano considerava “influente” na Petrobras. De vez em quando, Cunha perguntava a Baiano se ele ou as empresas espanholas que representava podiam fazer doações para campanhas eleitorais de 2010.

Valendo-se dessa recente relação, Fernando Baiano propõe ao deputado cobrar a diferença de propina que Júlio lhe devia. Em troca, daria 20% ao parlamentar, que, assim, poderia resolver problemas de financiamento de campanha das eleições. Numa primeira conversa, Baiano usou o nome de caciques do PMDB para impressionar Cunha como beneficiários da propina. Júlio Camargo seguia prometendo pagar).

 

Correio braziliense, n. 19508, 23/10/2016. Política, p. 2