Vantagem para o bicho

 
29/10/2016
Chico Otavio
Aloy Jupiara

 

“Não acredito que o próprio STF, que acabou de consagrar a possibilidade de execução provisória da pena, retroceda no combate ao crime organizado” José Augusto Vagos Procurador da República

O ministro do STF Marco Aurélio Mello suspendeu o julgamento de 23 réus da máfia dos caça-níqueis, entre eles bicheiros, alegando possível irregularidade nas escutas, revelam CHICO OCTAVIO e ALOY JUPIARA. A três semanas de uma audiência que poderia levar a cúpula da contravenção do Rio à prisão, para cumprir uma pena de quase 48 anos, uma liminar concedida pelo ministro Marco Aurélio Mello, relator da Operação Furacão no Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu o julgamento. Atendendo a pedido de um dos réus, Jaime Garcia Dias, Marco Aurélio alegou que o caso deve aguardar uma decisão do Supremo sobre a possibilidade de realização, por mais de 30 dias, de sucessivas interceptações telefônicas em investigações criminais.

Cúpula do bicho. Policiais conduzem Capitão Guimarães (à esquerda), Anísio (ao centro) e Turcão para uma audiência poucos dias após serem presos na Operação Furacão

A questão sobre as escutas foi levantada por um recurso extraordinário do ministro Gilmar Mendes, e o STF já decidiu que a posição a ser tomada terá repercussão geral — a decisão terá de ser aplicada posteriormente pelas instâncias inferiores, em casos idênticos.

O julgamento estava marcado para o dia 9 de novembro, na 1ª Turma do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2). Se fossem condenados, os réus iriam para a prisão, porque o próprio Supremo já admitiu que a execução de penas pode ter início após a condenação em segunda instância. Os bicheiros Aílton Guimarães Jorge, o Capitão Guimarães; Aniz Abraão David, o Anísio; e Antonio Petrus Kalil, o Turcão, já foram condenados em primeira instância a 47 anos, nove meses e 20 dias de prisão, pela juíza da 6ª Vara Criminal Federal, Ana Paula Vieira de Carvalho, por comandar um esquema de pagamento de propina a autoridades do Judiciário, a fim de liberar componentes de máquinas caçaníqueis apreendidas pela Receita Federal.

 

DECISÃO PODE PARAR OUTROS PROCESSOS

A decisão de Marco Aurélio sobre a Furacão repercutiu no Judiciário fluminense, uma vez que abre caminho para que processos que tiveram escutas por mais de 30 dias, como o da Operação Lava-Jato e tantos outros de combate ao crime organizado, com base na lei 9296-96 (Lei da Interceptação Telefônica) e na Lei do Crime Organizado, sejam igualmente suspensos.

— Não acredito que o próprio STF, que acabou de consagrar a possibilidade de execução provisória da pena, retroceda no combate ao crime organizado e à corrupção. Mas preocupa a suspensão do julgamento sem que se tenha previsto pelo menos a suspensão também do curso da prescrição, que é uma das maiores causas de impunidade no Brasil — reagiu o procurador-chefe da Procuradoria Geral da República no Rio, José Augusto Vagos.

A Operação Furacão, deflagrada pela Polícia Federal e pelo Ministério Público Federal em 13 de abril de 2007, contra a máfia do bicho e dos caça-níqueis, utilizou escutas por mais de 30 dias. Por esse motivo, Marco Aurélio entendeu que o julgamento da apelação dos réus no TRF deveria ficar suspenso até que a repercussão geral do caso das escutas seja julgada em definitivo no Supremo. Gilmar Mendes defende limites na renovação das autorizações.

— Na Furacão, lembro que o próprio STF, pelo ministro César Peluzo, renovou sucessivamente as escutas, porque naquele momento havia suspeita do envolvimento de um ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) — destacou Vagos.

Decisões sucessivas de Marco Aurélio sobre a Furacão, sustentadas na ideia da presunção de inocência até o trânsito em julgado, têm mantido os bicheiros longe da prisão. Antes de o ministro conceder, no dia 20 deste mês, a liminar que suspendeu o julgamento em segunda instância, o réu Jaime Dias já tinha feito o mesmo pedido ao TRF-2 e ao STJ — nos dois tribunais, teve o pleito negado. Procurado, o advogado de Jaime, Nélio Machado, não retornou as ligações do GLOBO.

Na sentença original, Jaime é apontado como lobista da Associação de Bingos do Estado do Rio de Janeiro (Aberj) e “homem da linha de frente da quadrilha para corrupção de funcionários públicos”, agindo para garantir o funcionamento dos bingos. Advogado, ele integra o que a juíza qualificou de terceiro nível da quadrilha, ou linha de frente, “composto por aqueles membros a quem é determinada a realização direta dos atos de execução dos crimes de corrupção ativa, bem como os atos mais simples de administração dos negócios do grupo, que não envolvam decisões”. A magistrada diz também que Jaime era responsável pelo contato com autoridades do Judiciário e também da Polícia Federal, para fins de corrupção. Ele foi condenado a 28 anos e dez meses de prisão.

Além de suspender o processo, o ministro Marco Aurélio também refez decisões das instâncias inferiores, autorizando viagens internacionais dos réus — inclusive na data marcada para o julgamento —, por entender que a apreciação do recurso dos bicheiros e outros envolvidos no TRF “não implica no cerceamento do direito de ir e vir do requerente”.

O procurador da República José Augusto Vagos disse que, na Furacão, foram realizados monitoramentos telefônicos autorizados judicialmente, todos fundamentados.

— Quando se trata de organização criminosa com alto grau de sofisticação, essa técnica, além de outras, tais como interceptações telemáticas, são as únicas capazes de fazer chegar ao conhecimento das autoridades as atividades ilícitas de todos os envolvidos nos crimes.

 

“CASOS GRAVÍSSIMOS”

Vagos garante que os casos apurados foram “gravíssimos, entre eles, crime organizado e corrupção num contexto até então não imaginado pela sociedade, já que revelou o envolvimento de agentes públicos muito graduados”. Durante a investigação, foram gravados diálogos dos acusados, a partir de escutas telefônicas e ambientais autorizadas pela Justiça. A operação apreendeu documentos, planilhas e agendas, que mostravam como funcionava a rede de corrupção que ligava a cúpula do jogo a policiais e membros do Judiciário, acusados de vender sentenças favoráveis aos bicheiros donos de bingos

— Sem uma sucessividade razoável na renovação dos monitoramentos, jamais seria possível, àquela época, quando não era usual o instituto da colaboração premiada, debelar uma organização criminosa e tampouco chegar à sua liderança — defendeu Vagos.

A liminar ainda pode ser derrubada por uma decisão colegiada do STF.

 

O globo, n. 30399, 29/10/2016. Rio, p. 12