Valor econômico, v. 17, n. 4129, 10/11/2016. Brasil, p. A3
Pressão de múltis deve moderar protecionismo
Superávit americano com o Brasil também ajuda a conter novas medidas de Washington
Por: Daniel Rittner
O forte peso do setor privado nas relações comerciais entre Estados Unidos e Brasil deve conter o recrudescimento do protecionismo americano contra produtos brasileiros no futuro governo do republicano Donald Trump.
Grande parte do comércio bilateral - principalmente de bens industrializados - é feito entre subsidiárias do mesmo grupo, o que é conhecido como transações intrafirma.
Setores do governo responsáveis pela área de comércio exterior acreditam que a pressão das multinacionais jogará contra uma escalada protecionista nos Estados Unidos. Elas têm aversão à possibilidade de remanejamento súbito de suas linhas de produção e certamente vão deixar isso claro à Casa Branca.
Além disso, os americanos acumulam superávit de US$ 35 bilhões com o Brasil nos últimos cinco anos. É verdade que esse saldo vem caindo e foi reduzido para US$ 847 milhões, nos dez primeiros meses de 2016, mas avalia-se que ainda se trata de cifra suficiente para tirar os exportadores brasileiros do foco imediato de novas restrições.
Algumas dúvidas, no entanto, permanecem. Uma delas envolve a indústria siderúrgica. A última gestão republicana, de George W. Bush, levou ao limite a proteção para as defasadas usinas de aço americanas. Na reta final de seu governo, o presidente Barack Obama ressuscitou a onda protecionista no setor. O governo brasileiro reagiu e decidiu acionar a Organização Mundial do Comércio (OMC) contra os Estados Unidos, por causa de barreiras aos laminados planos da CSN e da Usiminas. (ver a reportagem País vai contestar na OMC sobretaxa dos EUA ao aço) A questão é se, com Trump na Casa Branca, esse problema não vai apenas piorar.
Há outras duas fontes de preocupação com a postura do republicano recém-eleito. Uma é a possibilidade de mais subsídios à agricultura para agradar segmentos da economia americana que foram abertamente favoráveis a Trump. Outra preocupação é o risco de congelamento de acordos, como a Parceria Transpacífica (TPP), no exato momento em que o Brasil dava mostras de engajamento na abertura comercial.
Sem nenhum palpite firme sobre o que acontecerá, o governo brasileiro chama atenção ainda sobre os desdobramentos das futuras ações de Trump. O eventual abandono das negociações para a Parceria Transatlântica - acordo de livre comércio entre Estados Unidos e União Europeia - pode até favorecer a discussão entre o Mercosul e a UE. Por outro lado, novas barreiras impostas à China podem direcionar mais produtos chineses para o Brasil, justo quando os chineses devem ganhar status de economia de mercado.
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'Treino é treino, joso é jogo', afirma Serra sobre linha dura na campanha
Serra: fundamental acompanhar montagem da equipe do futuro governo
Por: Daniel Rittner e Bruno Peres
"Treino é treino, jogo é jogo." Citando uma frase do meia Didi, jogador de futebol consagrado pela seleção brasileira nas Copas do Mundo de 1958 e 1962, o chanceler José Serra procurou transmitir uma mensagem de tranquilidade do governo brasileiro com a vitória do republicano Donald Trump nas eleições americanas.
Notívago assumido, Serra disse ter passado a madrugada em branco, acompanhando a apuração dos votos. Ele foi questionado então por jornalistas, em rápida declaração no Ministério das Relações Exteriores, sobre comentários feitos em julho de que a eleição de Trump representaria um "pesadelo" para todas as pessoas "de bem". "A gente só tem pesadelo dormindo. Eu estava acordado", ironizou o ministro.
Para ele, nas democracias, as decisões do eleitorado se respeitam e se cumprem. "E o jogo começa agora", frisou, explicando que não lhe cabe, em sua atual função, fazer qualquer análise dos motivos que levaram ao sucesso de Trump. A questão fundamental agora, segundo Serra, é acompanhar a montagem da equipe do futuro governo em áreas como as políticas econômica e externa. Nos Estados Unidos, boa parte dos cargos de alto escalão requer aval do Senado, o que acaba funcionando como um freio para nomeações polêmicas.
O embaixador do Brasil em Washington, Sérgio Amaral, foi incumbido pelo chanceler de abrir "canais de interlocução" com essa equipe. Para Serra, foi bom o fato de o Brasil ter passado ao largo dos discursos e críticas dos dois candidatos. "Não estarmos no centro dos acontecimentos foi positivo. É diferente do México e de outros players da arena internacional", observou.
Dizendo-se surpreso e mencionando o Brexit como outro resultado inesperado, Serra elogiou o discurso de celebração da vitória feito por Trump e afirmou que "sinceramente" não espera um recrudescimento do protecionismo comercial. Ele também minimizou os riscos para o futuro das relações entre Brasil e Estados Unidos. "Somos duas das maiores democracias e economias do mundo. Prevalecerá a determinação de reforçar as relações bilaterais", disse o ministro.
Logo de manhã, antes de qualquer outra manifestação oficial, o próprio presidente Michel Temer fez questão de colocar panos quentes na eleição de Trump. Ele afirmou que os dois países mantêm relações de caráter institucional, "de Estado para Estado", não vislumbrando, portanto, mudança na relação bilateral a partir do triunfo do republicano.
No âmbito interno, Temer disse que não há espaço para um poder exercido com "todo autoritarismo". Em sua avaliação, quem assume o poder não consegue exercê-lo "com todo autoritarismo" em função do que chamou de série de condicionantes a que o presidente precisa obedecer.
"Nós temos uma tradição democrática, tanto os Estados Unidos, como o Brasil. E evidentemente, quando alguém assume o poder, seja aqui no Brasil, seja especialmente nos Estados Unidos, onde as instituições são fortíssimas, é claro que o novo presidente que assume terá que levar em conta as aspirações de todo povo norte-americano", afirmou. "Tenho certeza que lá as coisas irão muito bem", acrescentou Temer.
Em nota, o Itamaraty disse estar "pronto" para aprofundar a cooperação com o futuro governo.
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Por: Daniel Rittner e Bruno Peres
O governo Temer acredita que o fato de o Brasil ter uma economia fechada, sem acordos relevantes de livre-comércio com outras nações, pode protegê-lo dos efeitos de uma possível política protecionista por parte do futuro governo Donald Trump. "Quem, no continente, exporta mais para os Estados Unidos, como o México, o Peru, a Colômbia e o Chile, vai sofrer mais, caso o novo presidente decida proteger seu mercado", observou um ministro.
Trump prometeu rever o Nafta, o acordo de livre-comércio com o Canadá e o México, firmado na gestão Bill Clinton, e interromper as negociações da TPP, a Parceria Transpacífico, com países dos continentes americano e asiático. Para se eleger presidente, contou com o apoio de Estados americanos que passaram por forte desindustrialização, como Michigan. Numa possível quebra de paradigma, recebeu os votos de trabalhadores desses Estados, tradicionais eleitores do Partido Democrata.
O Brasil, historicamente, rejeita fechar acordos de livre-comércio com os EUA. O temor é que a indústria nacional não consiga competir com a americana. Nas últimas décadas, o comércio entre os dois países estagnou, ao mesmo tempo em que a corrente de comércio cresceu de forma acelerada entre EUA e China e com os países com os quais os americanos fecharam acordos de liberalização comercial. A adoção agora de um viés protecionista por parte dos EUA, em tese, terá efeito reduzido sobre as vendas brasileiras.
Para as autoridades de Brasília, o discurso da vitória proferido por Trump na madrugada de ontem acalmou os mercados, inclusive no Brasil, embora as incertezas permaneçam. A preocupação é que o novo governo americano provoque volatilidade nos mercados, aumentando a aversão dos investidores a risco, o que diminuiria a disponibilidade de recursos e provocaria o aumento do custo das captações externas.
Em Brasília, avalia-se que a China, um grande exportador para os EUA, pode perder um pouco de mercado, mas continuará competitiva, mesmo diante de medidas protecionistas. O interesse nos efeitos de uma gestão Trump sobre a China se justifica porque o país asiático é o principal mercado das exportações do Brasil.
O risco que mais chama a atenção dos governantes brasileiros está na área militar. A retórica beligerante de Trump na campanha, amenizada em parte após a eleição, preocupa porque temem-se ações unilaterais ou intervenções militares americanas em algumas regiões do planeta, o que certamente traria distúrbios à economia mundial.