Correio braziliense, n. 19522, 06/11/2016. Opinião, p.11

 

Quatro decisões históricas do STF

Sacha Calmon

 

 

Nos últimos 70 dias, a nossa Suprema Corte, tão assoberbada, produziu quatro decisões históricas que penetram fundamente no manejo do Estado brasileiro. Antes de abordá-las, convém informar ao público leigo que temos, no mundo, Europa, Américas, boa parcela da Ásia e Oceania, destaques para a Austrália e a Nova Zelândia, e em alguns países africanos, dois sistemas de controle de constitucionalidade das leis: a) o sistema difuso, no bojo de um caso concreto, em que todo e qualquer juiz pode decretar a inconstitucionalidade de uma lei, mas sujeitando-a a recursos que terminam na mais alta Corte judicial (nascido nos EUA e confirmado no caso Marbury versus Madison), também chamado por alguns de judicial review e; b) o controle concentrado de constitucionalidade inspirado pelo jurista Kelsen na Áustria, desde 1920, em que  Cortes constitucionais concentram a competência para dizer se dada lei é ou não constitucional. Essa Corte fica acima do Poder Judiciário, dos parlamentos e dos governos (sempre parlamentaristas, às vezes com executivos fortes, como na França e em Portugal).

Às Cortes, chegam os justiçáveis, por meio de ações diretas de constitucionalidade e reclamações, ou pela via da exceção, quando os juízes ou tribunais param os processos e remetem os autos do incidente à Corte constitucional, que resolve a questão constitucional suscitada e  remete de volta o incidente que a determinou aos tribunais e juízes, que decidirão então a demanda entre as partes.

Pois bem, o Brasil é o único país do mundo a adotar os dois sistemas ao mesmo tempo, daí alguns autores falarem numa tal de “brazilian law”, ao lado do “civil law” (Europa continental ,onde a lei é a fonte primária do Direito) e do “common law” (Inglaterra e países anglófonos), onde os precedentes judiciais sobre os significados das normas que estão enclausuradas nas leis são revelados pelos juízes (“judge-made law”).

Agora vamos às decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), inicialmente referidas. A primeira decisão diz respeito aos limites da presunção de inocência. Ela vai até a condenação em segundo grau. A partir daí, a presunção é de culpa. Com efeito, os juízes e tribunais de apelação discutem os fatos e o direito. Se por duas vezes o réu for condenado, terá preservado o sagrado direito de recorrer ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e ao Supremo, até mesmo pela via do habeas corpus, mas o fará preso. Sempre foi assim até 2009, quando o ex-ministro Eros Grau convenceu a Corte que alguém só poderia ser preso em flagrante ou após o trânsito em julgado da decisão condenatória nas cortes superiores. É comum a condenação transitar após 12, 15 e até 18 anos após o crime. A impunidade sofreu um golpe tremendo, liquidando a chicana processual.

A segunda decisão foi considerar, superando o Tribunal Superior do Trabalho (TST), que o combinado nos acordos coletivos de trabalho vale mais do que a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), inspirada, aliás, no Código de Mussolini, do tempo do fascismo. É preciso valorizar o contrato coletivo de trabalho e as partes, ao invés de tutelar o trabalhador urbano como se fosse uma criança. Os advogados de sindicatos defendem o trabalhador. O juiz não é babá, julga segundo o direito. É preciso acabar com o mito de hipossuficiente. Um deles tornou-se presidente da República.

A terceira decisão da nossa Suprema Corte foi a de assegurar, aos governos federal, estaduais e municipais, o direito de descontar os dias parados nas greves dos servidores públicos. O entendimento da Corte pode conter o ímpeto grevista dos servidores federais, que tem as categorias mais bem organizadas do país. O PT, é sabido, sempre incitou manifestações de estudantes e paralisações no serviço público. Se lascou.

(...)

Os governos só não poderão cortar os dias parados – o que de resto prejudica a população intensamente – se eles próprios estiverem em mora, isto é, não pagarem os vencimentos dos funcionários, forçando com isso a austeridade nos gastos e investimentos em gestão (fazer mais com menos). Sabe-se que o PT inchou a máquina pública e descurou das regras de boa gestão, gastando à la godaça.

Parece-me que começamos a sair do lodaçal, e que os Poderes da República estão funcionando a contento, sem descurar dos três programas sociais: o BolsaFamília, o Minha Casa Minha Vida, e o financiamento estudantil (Fies). Terminaram as falácias da Dilma. Os programas contra a desigualdade social estão nos programas do PMDB e PSDB. Educação, saúde, segurança e mobilidade são prioritários.