Correio braziliense, n. 19538, 22/11/2016. Economia, p. 12

Aborto perdoável

 

Rodrigo Craveiro

 

A cada ano, mais de 21 milhões de mulheres interrompem a gravidez por meio de métodos clandestinos. Muitas se veem obrigadas a carregar o fardo da culpa e do pecado. Em uma decisão surpreendente, o papa Francisco publicou ontem a carta apostólica Misericordia et misera (“Misericórdia e piedade”, em latim), por meio da qual autoriza todos os padres do mundo a perdoarem o “pecado do aborto”, sem que seja necessária a mediação de um bispo ou do próprio pontífice. “Para que nenhum obstáculo se interponha entre o pedido de reconciliação e o perdão de Deus, de agora em diante concedo a todos os sacerdotes, em razão de seu ministério, a faculdade de absolver a quem tenha procurado o pecado do aborto”, escreveu o líder católico argentino.

O perdão, que somente era dado durante o período do Jubileu da Misericórdia, agora se estende por tempo ilimitado. “Quero enfatizar, com todas as minhas forças, que o aborto é um pecado grave, porque põe fim a uma vida humana inocente. Com a mesma força, no entanto, posso e devo afirmar que não existe nenhum pecado que a misericórdia de Deus não possa alcançar e destruir, ali onde se encontra um coração arrependido”, acrescentou Francisco.

Em entrevista ao Correio, três vaticanistas italianos reconheceram a importância da medida, que deve confrontar parte da ala da Igreja e foi saudada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). “O papa tomou uma decisão corajosa. Infelizmente, a porção mais conservadora dos bispos e cardeais não receberá bem a medida, por perceberem-na como um perigo. A inovação pastoral sobre o aborto pode afetar o já reduzido senso comum de pecado, como se o aborto fosse percebido como algo menos grave do que o assassinato”, disse Franca Giansoldati, do jornal Il Messaggero.

Segundo ela, a mudança de abordagem em relação à interrupção da gestação “foi um tabu que se desmoronou”. “Francisco tem abordado o tema, de forma repetida, ao recontar a dor e o drama das mulheres. Ele se colocou no lugar delas e tentou lidar com a dor que sentem, pela perspectiva da misericórdia.”

 

Envolvimento

Marco Tossati, repórter do diário La Stampa (em Turim), entende que o papa se sentiu obrigado a se envolver na polêmica, após o crime e o pecado do aborto se tornarem disseminados, inclusive dentro da comunidade católica. “A partir de agora, quando as fiéis que cometeram aborto se arrependerem e quiserem se reconciliar com Deus e com a Igreja, poderão fazê-lo facilmente”, explica. Giansoldati concorda e lembra que os pecados permanecem inalterados. No entanto, ela crê que as mulheres que abortaram terão mais possibilidades de refletirem sobre sua condição, de forma madura, e chegar à decisão de ficar perante Deus com um pedido de perdão.

Para Andrea Tornielli, estudioso do jornal La Stampa e autor de Francis: Pope of a new world (“Francisco: Papa de um novo mundo”), a decisão da Santa Sé não deve ser vista como quebra de paradigmas ou de tabus, pois a excomunhão permanece contemplada pelo código canônico. “A novidade é a possibilidade de que todos os padres, em todas as épocas do ano, deem o perdão. Francisco foi muito claro sobre a gravidade desse pecado”, observa. Ele descarta que a concessão do perdão possa deteriorar a relação entre a Igreja Católica e ativistas contrários ao aborto. “Por Francisco ter afirmado, tantas vezes, que o aborto é um crime horrível e um pecado muito grave, acho que não haverá problema com os movimentos pró-vida.”

 

Esforço

No ano passado, o pontífice havia estendido a todos os padres a capacidade de absolverem o pecado do aborto durante o Ano da Misericórdia. John Jansen, coordenador de projetos da organização não governamental Pro-Life Action League (“Liga de Ação Pró-Vida”, em inglês), considera “maravilhoso” que Francisco tenha ampliado a autorização em caráter permanente. “Isso mostra que ele está se esforçando para oferecer a misericórdia de Deus a quem mais precisa. Ao longo dos anos, temos visto inúmeras mulheres que se submeteram a abortos e, por isso, acham que cometeram um pecado imperdoável. Nenhum pecado está acima da misericórdia de Deus. Por isso, a decisão do papa é tão importante”, comenta o ativista.

Ex-aluno do papa emérito, Bento XVI, o padre e teólogo americano Joseph Fessio disse ao Correio que é preciso ajudar aquelas mulheres “verdadeiramente arrependidas” do aborto. De acordo com ele, a reserva do pecado ao bispo tornou o ato muito mais pesado. “As mulheres estão frequentemente sob intensa pressão. Uma vez que percebam o que fizeram, e lamentem por sua decisão e pela perda da criança, é bom que elas recebam a graça do sacramento”, defende.

 

Eu acho...

“É uma decisão importante, pois o papa está pensando na salvação das almas e oferecendo mais possibilidades aos católicos. A chance de perdão não é novidade. Em vários casos, uma diocese autorizou o ato, por parte dos bispos, em determinados momentos do ano litúrgico.”

Andrea Tornelli, vaticanista do jornal La Stampa e autor de Francis: Pope of a new world

(“Francisco: Papa de um novo mundo”)

 

 

“É um gesto de esperança para mulheres que abortaram e para qualquer pessoa envolvida com o aborto. A Igreja Católica existe para levar os seus filhos ao céu, e o modo como ela o faz é oferecendo a miserciórdia de Deus. A decisão do papa nos lembra que essa misericórdia está sempre disponível.”

John Jansen, coordenador de projetos da ONG Pro-Life Action League