Título: Uma praça em ebulição
Autor: Craveiro, Rodrigo
Fonte: Correio Braziliense, 24/11/2011, Mundo, p. 29

Trégua mediada por religiosos muçulmanos fracassa, e o caos se instala em Tahrir, no centro do Cairo. ONU apela para o fim do uso de força excessiva. Para psiquiatra egípcio, o gás lacrimogêneo é letal.

Já se passaram mais de 100 horas. Com pedras nas mãos, milhares de manifestantes que ocupam a Praça Tahrir, no centro do Cairo, não se intimidam com as bombas de gás lacrimogêneo, as balas de borracha e, eventualmente, munições letais disparadas pelos militares. O estudante egípcio Shehab Saif, de 23 anos, é um deles. Após socorrer o colega ferido, ele espera em um hospital de campanha montado no local, próximo à Rua Mohammed Mahmoud — onde se concentram os piores confrontos. Por telefone, admite ao Correio que Tahrir se transformou em uma zona de guerra. "Eu não posso ficar aqui, tenho que correr, o gás lacrimogêneo está vindo em nossa direção e vejo fogo", relatou. "Oh, meu Deus! Eu não posso ver. As pessoas estão começando a correr", acrescentou, por volta das 19h15 (15h15 em Brasília).

Uma frágil trégua negociada por clérigos muçulmanos com os militares durou pouco mais de três horas. "Houve um acordo e os policiais se retiraram do Ministério do Interior. Quando os ativistas oravam, o Exército voltou e disparou várias bombas de gás lacrimogêneo", contou Shehab. A tevê estatal egípcia exibiu a imagem dos religiosos a caminho de Tahrir, na esperança de "formar um escudo humano entre as forças de segurança e os manifestantes". Amhmed Al-Tayeb, imã da Mesquita de Alzhar e a mais alta liderança sunita, pediu ao Exército que evitasse os confrontos "entre os filhos do mesmo povo". "Conclamo nossos filhos, na Praça Tahrir e em todas as praças do Egito, a conservar o caráter pacífico de sua revolução (...) e proteger os bens públicos e privados", disse.

Com a intensificação da violência, a alta comissária para Direitos Humanos das Nações Unidas, Navi Pillay, convocou o Egito "a pôr fim ao evidente uso excessivo da força". "Algumas imagens provenientes de Tahrir, incluindo o brutal espancamento de manifestantes já subjugados, são profundamente chocantes, bem como os relatos de ativistas desarmados atingidos na cabeça", declarou, por meio de um comunicado. "Deveria haver uma investigação rápida, imparcial e independente, e a punição daqueles responsáveis pelos abusos." A Irmandade Muçulmana, a principal organização política do Egito, boicotou a manifestação de terça-feira e aguarda com ansiedade as eleições parlamentares de segunda-feira.

A 100m da Rua Mohammed Mahmoud, o ativista egípcio Sherif Azer, de 32 anos, afirma à reportagem que mais de cinco tipos de bombas de gás lacrimogêneo foram usados pelas forças do Conselho Supremo das Forças Armadas (SCAF), a instituição que governa o Egito. "Parece um tipo de gás. Algumas amostras foram enviadas a um laboratório para serem analisadas", revela. Vice-secretário geral da Organização Egípcia para Direitos Humanos, Sherif acredita que os protestos devem se intensificar nos próximos dias, até que a situação do SCAF se torne insustentável. "Ninguém está disposto a desistir ou a se render. Enfrentamos uma situação muito difícil, mas temos que lidar com ela. Se falharmos, estaremos aceitando o governo militar", alerta.

Agente nervoso Segundo Sherif, a quarta-feira em Tahrir foi marcada por ativistas sendo feridos "o tempo todo", ainda que não demonstrassem qualquer sinal de ameaça às tropas. "As forças de segurança abriram fogo contra pessoas que rezavam, durante a trégua. O que ocorre aqui é muito mais do que uma violação dos direitos humanos", desabafa. Na terça-feira, Mohammed ElBaradei — ex-diretor da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) e pré-candidato à Presidência do Egito — acusou o SCAF de usar armas químicas proibidas contra os manifestantes. "Gás lacrimogêneo com agente nervoso e munição letal estão sendo usados contra os civis em Tahrir. Uma massacre está acontecendo", declarou, por meio do microblog Twitter.

Na tarde de ontem, o psiquiatra egípcio Mustafa Hussain atendia a manifestantes com sinais de intoxicação. Às 21h de ontem (17h em Brasília), ele afirmou ao Correio que os hospitais do Cairo receberam centenas de feridos — a maior parte com lesões provocadas por balas de borracha e com sufocamento. "O gás lacrimogêneo tem representado uma grave ameaça à vida dos ativistas, que sofrem de "agonia respiratória"", explica.

De acordo com o médico, não há provas de uso de armas químicas proibidas por parte do SCAF. "As pessoas afetadas não têm apresentado crises epilépticas. No entanto, o padrão de gás lacrimogêneo utilizado pela junta militar é muito tóxico. As bombas com o material são lançadas de uma curta distância e com uma concentração muito alta", afirma. Mustafa garante que entre 40 e 50 ativistas morreram desde o início dos confrontos, no sábado. Ele confirmou que colegas viram cadáveres com marcas de bala. Além da Praça Tahrir, foram registrados confrontos em Alexandria e Port-Saad (norte), Suez e Qena (centro), Assiut e Aswane (sul) e na província de Daqahliya, no Delta do Nilo.