04/02/2017
A indignação com a negação de liberdade aos escravos só começou a contaminar a mentalidade da sociedade a partir da segunda metade do século XIX. Ao longo de 300 anos, a Igreja Católica apoiava, os proprietários de terra precisavam, as classes médias se beneficiavam, e raros intelectuais criticavam a escravidão. A escravidão era cômoda e natural para a “classe” branca: não havia indignação nem pretextos morais para extingui-la. Enquanto era defendida por razões lógicas ou econômicas, a causa abolicionista adquiria algum apoio, mas não conseguia os seguidores necessários para se impor sobre a mentalidade histórica que aceitava natural a desigualdade entre brancos e negros. A Abolição só se consolidou quando os abolicionistas conseguiram passar indignação moral contra a escravidão.
Mais de cem anos depois, a população brasileira ainda não sente indignação moral com a moderna escravidão decorrente da desigualdade no acesso educacional de cada criança, dependendo da renda da família. A má educação ainda não é vista como um navio negreiro que leva milhões de crianças carentes em direção à pobreza, e leva o país à baixa produtividade, má distribuição de renda, violência, ineficiência e a injustiças. Não se consegue visualizar que uma criança fora de boa escola é como se ela fosse uma pessoa sendo jogada ao mar, crescendo para ser explorada e excluída devido à negação da educação. Não há nem mesmo um nome para indicar “negação de educação”, como havia a palavra escravidão para indicar “ausência de liberdade”. A negação da liberdade a um escravo era visível na sua servidão, no trabalho forçado, na venda dele próprio e de seus filhos, mas a negação de acesso à educação não é vista como um crime nacional contra a humanidade; nem como uma burrice contra o futuro do país.
A partir do século XIX, a escravidão passou a ser uma aberração moral, mas ainda era um instrumento técnico para uso do mais importante vetor econômico, que eram os braços dos escravos; no século XXI, a negação da educação — “an-educação” — é uma aberração moral, mas também é uma estupidez nacional ao impedir o aproveitamento do mais importante vetor do progresso nos tempos atuais: o conhecimento de cada cidadão ou cidadã livre e educada.
Apesar disso, a ausência de educação de qualidade para todos ainda não é vista como uma indecência social e uma estupidez econômica.
Lamentavelmente, é difícil provocar a indignação da população contra esta tragédia. E sem este despertar moral, o Brasil continuará seu atraso em relação ao resto do mundo, e manterá as injustiças a que nos acostumamos dentro de nosso território, como acontecia nos séculos da escravidão.(...)
Cristovam Buarque é senador (PPS-DF)
O globo, n. 30497, 04/02/2017. Artigos, p. 15