O marketing do crime

Jacqueline Muniz e Zeca Borges 

12/02/2017

 

 

 

As lideranças das facções criminosas não têm causas a defender, e sim cálculos a realizar na disputa política e econômica por mercados ilegais. Fazem uso do horror como mensagem aos concorrentes do momento e aos sócios de ocasião. Tudo para fazer valer, por exemplo, algumas acomodações tácitas dentro ou fora das cadeias e, até mesmo, a arrecadação de fundos junto aos políticos locais. Podem até fazer uso da violência sem a perspectiva de vantagens diretas, para ampliar sua reputação e influência. Aterrorizam para mostrar que são mais do que, de fato, podem. Aterrorizam para mostrar que são capazes e poderosos, afirmar sua existência e identidade, buscar adeptos. Puro marketing.

O uso do terror não tem oponente: tem alvos. Para produzir terror, o melhor é começar produzindo pânico. E para produzir pânico, é fundamental que haja espetáculo com imediata e ilimitada difusão. Os alvos são escolhidos para assegurar uma irrestrita repercussão. Não se produz terror sem plateia, no silêncio e na invisibilidade. É preciso amplificar a percepção de incerteza e imprevisibilidade que o terror produz. A propaganda é a alma deste negócio, pois quem do terror faz uso sabe que não tem como vencer com o resultado de seus sucessos, nem como perder com o resultado de seus fracassos. Escolhe alvos de oportunidade ou de grande valor simbólico. Alvos que despertem o horror, o medo e a comoção do maior número possível de pessoas: atacar transeuntes ou queimar ônibus, matar policiais ou metralhar delegacias, degolar outros prisioneiros. Alvos que lhes deem a aparência de grande poder, ousadia e crueldade. Alvos e atos de terror como peças publicitárias. Pura propaganda.

Com muito pouco se pode fazer mais e ainda pior! Por isso, não se deve superestimar e nem subestimar a real capacidade dos bandos armados, promovendo-os a alguma forma de Estado paralelo ou rebaixando-os a algum tipo grupo de autoajuda. Suas práticas não necessitam de adesão substantiva, inteligência, organização ou grande capacidade. Bastam disposição, armas e oportunidade. Nomeá-los como um Estado paralelo ou como uma empresa é fazer o jogo deles. E, o mais sério: autorizar, sem perceber, a produção de violência pelo Estado, e induzir as forças públicas a fazerem elas mesmas o terror e o justiçamento, legitimando contragolpes espetaculares, exemplaristas e ineficazes.

É preciso estar alerta para a armadilha perigosa que o senso comum nos apronta. Aceitar a lógica do terror é aceitar o temor como conselheiro, entregando-se ao oportunismo de quem se apresenta como o mais forte do momento: aqueles que fabricam ameaças duradouras para ofertarem abrigos provisórios. Isto corresponde a abandonar a Segurança Pública em favor da construção dos mais diversos arranjos particulares de proteção. Proteção é confinamento e isolamento individual: carro blindado, muro alto, câmeras, escoltas, seguranças e distância dos outros. Segurança Pública é movimento e pertencimento coletivo: estar próximo e com os outros, ter a garantia de andar no Centro da cidade ou na praia, levando distraidamente seus pertences e falando ao celular, sem que nada aconteça. Proteção tem preço, é só para os que podem pagar. Segurança Pública não tem preço, tem custo, e é para todos.

Existem no Brasil experiências de sucesso e promissoras, que foram abandonadas pelos mais estranhos motivos e que seguiriam dando resultados se tivessem sido blindadas dos apetites eleitoreiros e das apropriações particularistas. Há quem conheça algumas de mais de 30 anos atrás. Este é o verdadeiro legado que diversos agentes públicos, acadêmicos, gestores e políticos nos deixaram e cuja memória não pode ser abandonada. E, se já dispomos de um acervo de acertos, por que apelar para a proteção?

O desafio diante de nós quando o precedente do uso do terror está posto não é novo. Trata-se da afirmação do Estado Democrático de Direito como uma alternativa superior a todas as outras — em metas, em métodos, em meios. Corresponde à nossa resposta cabal à dúvida de Abraham Lincoln: “De há muito tempo, tem sido uma grave questão saber se qualquer governo que não seja demasiadamente forte para as liberdades de seu povo poderá ser bastante forte para manter essas liberdades em uma emergência”.

Jacqueline Muniz é professora do Departamento de Segurança Pública da UFF, e Zeca Borges é coordenador do Disque-Denúncia

O globo, n. 30505, 12/02/2017. Artigos, p. 19