Anfitrião que é dúvida na própria festa 
Giselle Ouchana, Luiz Ernesto Magalhães e Renan Rodrigues 
17/02/2017
 
 
Crivella pretende passar folia longe do Rio, mas depende de autorização da Câmara para deixar a cidade

Um mistério ronda o Sambódromo a sete dias da abertura oficial do carnaval — e não estamos falando de como serão a comissão de frente das escolas ou os abre-alas, segredos guardados a sete chaves pelas escolas de samba. A dúvida é se o anfitrião vai aparecer na festa. Segundo aliados, o prefeito Marcelo Crivella, bispo licenciado da Igreja Universal, quer passar os dias de folia longe do Rio, bem distante de confetes e paetês — os destinos mais cotados são Israel e África do Sul. A prefeitura, oficialmente, não confirma nem desmente a viagem, mas pistas não faltam de que esta pode ser a primeira vez que um prefeito, em início de gestão, não prestigiará os sambistas e o público que lotam a Marquês de Sapucaí. Hoje, por exemplo, serão leiloados cinco camarotes da administração municipal que tradicionalmente abrigam o alcaide e seus convidados. Quem quiser ficar no espaço, no Setor 9A, terá que desembolsar no mínimo R$ 600 mil, valor do lance inicial. Desalojados, os secretários municipais, que costumam assistir ao desfile do local, foram convidados para o camarote da Riotur, no Setor 11, bem menos espaçoso.

Outro sinal de que Crivella poderá não aparecer na maior festa do Rio é que ele já abriu mão de uma das atribuições do cargo nos dias de folia: na sexta-feira de carnaval, quem vai entregar as chaves da cidade ao Rei Momo será a secretária de Cultura, Nilcemar Nogueira, neta de Dona Zica e criadora do Centro Cultural Cartola, na Mangueira.

— Vai ser uma honra por tudo que o samba e o carnaval representam na minha vida — disse Nilcemar, que promete também, na eventual ausência do prefeito, assumir o papel de anfitriã e recepcionar os representantes de agremiações na Marquês de Sapucaí.

Segundo a assessoria do prefeito, ainda não há uma definição sobre a presença ou não de Crivella na Sapucaí. Se ele resolver aparecer, não vai destoar dos seus antecessores. Afinal, desde a inauguração do Sambódromo, em 1984, todos os prefeitos em início de mandato foram ao Sambódromo. Alguns, mais desinibidos, não escondiam o gosto pela festa. Eduardo Paes, por exemplo, último a ocupar o cargo, participou de todos os carnavais durante sua gestão (2009 a 2016). Sambava e mostrava sua predileção pela Portela. Outro que fazia questão de participar era Cesar Maia, que, mesmo sem samba no pé, deu outro jeito de participar da festa: em 1993, surgiu para varrer a avenida.

— Há momentos em que o prefeito não representa seu partido, mas a cidade. Entendo que, por sua religião, ele não queira sambar ou algo assim. Mas a presença dele, descendo à pista, para passar a bandeira de cada escola, é imprescindível. O prefeito tem em frente a seu camarote uma sala reservada. Pode descansar e descer quando quiser. Na pista, não é o Cesar ou o Crivella, mas a cidade em sua festa de identidade — diz Cesar Maia.

ENTIDADES LAMENTAM

O presidente da Associação Brasileira da Indústrias de Hotéis (ABIH), Alfredo Lopes, também torce para que Crivella apareça:

—É o primeiro carnaval dele. Acho muito ruim se não participar. Afinal, ele é o anfitrião da maior festa do mundo.

Representantes de algumas agremiações do Grupo Especial também especulam se Crivella estará presente na festa e lamentam uma possível ausência do prefeito.

— É lamentável (a possível ausência). Na campanha, ele esteve com as escolas, falou que estaria presente (nos desfiles). Acho que ele está misturando um pouco as coisas, principalmente porque é o primeiro ano dele — diz o presidente da Unidos da Tijuca, Fernando Horta.

Já o atual presidente da Portela, Luiz Carlos Magalhães, pondera que a questão precisa ser analisada a partir da justificativa que o prefeito dará, caso se ausente.

— Se for uma questão religiosa, não há o que discutir. Todos sabemos que ele tem a religião dele, sempre deixou isso claro. Só não sei se a religião faz esse tipo de proibição — analisa Magalhães. — É desejável, claro, que o prefeito esteja na maior festa da cidade.

O presidente da Liga das Escolas de Samba (Liesa), Jorge Castanheira, minimizou o caso, mas admitiu que a ausência de Crivella será notada por todos.

— Temos total respeito pelo prefeito e pelo que ele vai definir em relação à agenda dele. Porém, sentiremos a falta do nosso representante maior. Vamos esperar por ele nos próximos anos — afirma.

Se, por um lado, impedimentos religiosos — um bispo da Igreja Universal, na página da instituição, conclamou ano passado os fiéis a se manterem afastados do carnaval — podem tirar Crivella do Sambódromo, problemas burocráticos também ameaçam o sonho do prefeito de viajar. Para Crivella deixar o país, ele precisa ser liberado pela Câmara Municipal. Por uma exigência da Lei Orgânica, os vereadores devem conceder uma autorização legislativa. A regra vale desde o dia 1º de janeiro, quando Crivella tomou posse.

SEM AUTORIZAÇÃO PARA SAIR DO RIO

Como o legislativo carioca só iniciou os trabalhos na última quarta-feira, os vereadores ainda discutem a formação das comissões temáticas da Casa. Por isso, não é possível votar qualquer projeto — nem mesmo o que pode liberar o prefeito para uma viagem. A autorização parece um simples ato burocrático, mas o prefeito que desobedecer a norma corre sérios riscos. De acordo com a Lei Orgânica do Município, a punição, caso ele ou seu vice se ausente, mesmo que por um único dia, em viagem ao exterior, em missão oficial ou por interesse particular, é a perda de mandato. A mesma regra vale se eles ficarem no Brasil, mas longe do Rio, por mais de 15 dias, sem autorização prévia.

Normalmente, para facilitar a vida dos prefeitos, a autorização é concedida no ano anterior e válida para todo o exercício seguinte. No entanto, em 2016, os vereadores da bancada do PRB, partido de Crivella, não prestaram atenção a esse detalhe. E, em fim de mandato, o ex-prefeito Eduardo Paes também não se interessou em encaminhar o pedido para o sucessor, deixando Crivella nas mãos da Casa. O atual líder do governo da Câmara dos Vereadores, Paulo Messina (Pros), tenta acelerar a discussão da formação das comissões para que Crivella possa carimbar seu passaporte. Para que o prefeito possa fazer as malas, basta que o projeto seja aprovado por maioria simples. Ou seja, que entre 26 votos, 14 sejam favoráveis ao prefeito.

— Muita gente não prestou atenção a esse detalhe da falta de licença. Mas eu estou preocupado. Pelo nosso cronograma, a ideia é fechar as discussões sobre as comissões na terça-feira que vem. E no mesmo dia, votar a autorização para que o prefeito viaje em duas sessões extraordinárias. Vai dar certo — disse Messina.

O globo, n. 30510, 17/02/2017. Rio, p. 9