ENTREVISTA - Flávia Piovesan

19/03/2017

 

 

‘É fundamental construir diálogo com os Estados’

 

Indicada para disputar vaga em órgão da OEA, secretária especial de Direitos Humanos defende pauta que privilegie grupos vulneráveis. Segundo ela, Brasil retoma projeção após fissura do governo Dilma com a entidade

 

RENATA MARIZ

renata.mariz@bsb.oglobo.com.br

 

Aos 48 anos, a secretária especial de Direitos Humanos, Flávia Piovesan, vai concorrer a uma vaga na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), órgão autônomo da Organização dos Estados Americanos (OEA), defendendo um olhar diferenciado a negros, indígenas, mulheres, migrantes e privados de liberdade. Ela é professora de Direito Constitucional, autora de livros na área de direitos humanos e procuradora do estado de São Paulo, cargo do qual está licenciada.

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Qual deve ser o principal foco da CIDH para o continente e o Brasil?

A proteção aos grupos mais vulneráveis, como os povos indígenas, as mulheres, os afrodescendentes, migrantes, privados de liberdade, a população LGBTI, que merecem um olhar diferenciado. Outro grande tema se relaciona à violência. Há três anos, assisti audiências da Corte Interamericana com o México sobre desaparecimento forçado, tortura, violação nos cárceres, execuções sumárias. É um tema muito presente na região, que se relaciona também com a violação à vida de jornalistas investigativos e outros atores que se dedicam a defender os direitos humanos. São pautas novas que estão na agenda contemporânea regional e nacional.

 

A CIDH manifestou no ano passado preocupação com a saída de Dilma Rousseff “por meio de julgamento político”. Pesa contra ter sido indicada pelo governo que a sucedeu?

Na ótica de uma constitucionalista que sou, tenho total convicção de que todos os procedimentos foram estritamente respeitados. Antes mesmo de imaginar ser convidada para o cargo de secretária e muito menos ser indicada para a Comissão, essa sempre foi minha opinião. A presidente Dilma, que merece todo o respeito, que é uma mulher combativa, recorreu dezenas de vezes ao Supremo Tribunal Federal, e o Direito tem a última palavra numa democracia. Nós vivemos uma democracia no Brasil em pleno funcionamento.

 

E sobre regimes na região tidos como antidemocráticos, cabe à Comissão interferir?

Acredito muito no Sistema Interamericano de Direitos Humanos porque ele salvou e continua salvando vidas. Contribuiu para a desestabilização da ditadura na região. A Comissão foi à Argentina, foi ao Chile e teve a coragem de denunciar os arbítrios do regime ditatorial. Deu uma visibilidade internacional para o problema que é importante para desencorajar os Estados a continuar e incentivá-los a avançar em políticas públicas, em marcos legislativos ou ao menos não retroceder. A base é a Convenção Americana de Direitos Humanos, para impulsionar avanços e deter recuos na região.

 

A crise entre Brasil e a CIDH, após o órgão emitir medidas cautelares em 2011 para paralisar obras de Belo Monte, deixou fissuras na relação?

Houve essa fratura, com um ataque forte à Comissão. A presidente Dilma retirou a candidatura à época do ex-ministro Paulo Vanucchi, depois retomada, felizmente; retirou também o embaixador do Brasil junto à OEA; limitou a contribuição ao Sistema Interamericano. Felizmente esse momento sombrio passou. O Brasil sinalizou com muita veemência, quando apresentou a candidatura de Vanucchi, que voltava para o sistema e, hoje, com a minha candidatura, que quer permanecer. O Brasil pagou as contribuições que estavam atrasadas? Sim. O Brasil começou a pagar em 2015 e 2016, então está tudo pago.

 

Que propostas a senhora leva para tornar o Sistema Interamericano mais efetivo na proteção dos direitos humanos?

Primeiro, é preciso fortalecer a juridicidade, para se amparar nas próprias decisões com transparência, objetividade, não seletividade, imparcialidade. Além desse ponto, é fundamental construir diálogos com os Estados, porque as decisões internacionais não serão implementadas em Júpiter ou Marte. É importante também ampliar a adesão à Convenção Americana de Direitos Humanos (que tem 24 signatários) e lutar pela sustentabilidade do Sistema Interamericano, que sofreu também com a crise financeira. Não entendo de muita coisa, mas de sistemas regionais de direitos humanos eu entendo. Então me sinto muito honrada e legitimada com a candidatura. A senhora cogitou sair do governo? Não. Tenho compromisso com as causas, a pasta, a equipe e os projetos. Se eventualmente eu for eleita, só assumirei o mandato em janeiro de 2018, e até lá vou me manter na pasta.

 

Há espaço no governo para tocar políticas de direitos humanos em meio à agenda reformista que, segundo críticas, reduz o alcance dos direitos sociais?

Sim, nós mantivemos as políticas públicas até então desenvolvidas e buscamos aprimorá-las. Estamos inovando com projetos em educação em direitos humanos, como o pacto firmado com universidades, qualificando lideranças comunitárias.

O globo, n.30540 , 19/03/2017.Mundo, p. 38