Os preços da delação 
Chico Otavio 
15/05/2017
 
 
Punições a agentes que colaboraram com a Justiça expõem conflito entre instituições

“(A OAB-RJ) faz um julgamento sumário, generalizando situações e desconsiderando a prescrição”

Cesar Romero

Advogado e delator na ação que prendeu Côrtes

A suspensão por 90 dias do advogado Cesar Romero Vianna, decisão recente do Tribunal de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil do Rio (OAB-RJ), expõe um conflito entre as instituições que apuram e punem os envolvidos na onda de escândalos iniciada pela Operação Lava-Jato. Cesar, delator premiado, recebeu benefícios judiciais em acordo firmado com o Ministério Público Federal (MPF). Cesar alega que a punição imposta pela OAB-RJ, baseada em provas que ele mesmo apresentou, atropela o acerto com os procuradores da República.

A polêmica é reforçada pela ação de improbidade administrativa, movida há duas semanas pelo Ministério Público Estadual do Rio, contra 30 acusados de irregularidades e desvios bilionários no processo de licitação e nas obras da Linha 4 do metrô carioca. Na lista de réus, figuram a Odebrecht e a Andrade Gutierrez, empreiteiras que fizeram acordos de leniência e ofereceram a colaboração ao MPF de dirigentes e funcionários no âmbito da Lava-Jato. No MPF, há reclamações sobre as ações do MP do Rio, que podem atrapalhar os acordos.

A Odebrecht, em sua defesa, dirá que está protegida de eventuais ações pelas garantias da leniência por entender que “cumpriu o seu dever ao fazer a colaboração definitiva com a Justiça, apresentando relatos e provas de como se processam as relações entre empresas privadas e agentes públicos”.

Responsável pela delação que fundamentou a prisão do ex-secretário estadual de Saúde do Rio Sérgio Côrtes, o advogado Cesar Romero disse que a suspensão de 90 dias pela OAB funcionará, na prática, como um desestímulo a novas delações:

— Fico indignado com a conduta do órgão de classe que deveria primar pelo cumprimento das leis, especialmente do direito ao contraditório. Em vez disso, faz um julgamento sumário, generalizando situações e desconsiderando a prescrição. Ainda tive de ouvir de uma conselheira que as delações premiadas são manobras usadas pelos criminosos para escapar das condenações.

Romero, na condição de ex-braço-direito de Sérgio Côrtes, apontou desvios nas compras internacionais e na área de serviços continuados na Secretaria estadual de Saúde. Ela sustenta que os motivos da suspensão foram extraídos da própria delação, na qual relatou episódios ocorridos entre 2003 e 2010, “portanto já prescritos, porque já se passaram mais de cinco anos”.

Outro delator premiado, o advogado Jonas Lopes Neto deverá sofrer a mesma sanção da OAB-RJ. Junto com o pai, o ex-presidente do Tribunal de Contas do Estado (TCE) Jonas Lopes de Carvalho, ele fez a delação que provocou a prisão de cinco conselheiros do órgão, além da condução coercitiva do presidente da Assembleia Legislativa do Rio, deputado Jorge Picciani (PMDB).

OAB-RJ: ADVOCACIA FOI EXPOSTA

O presidente da OAB-RJ, Felipe Santa Cruz, explicou que todos os advogados envolvidos na Operação Calicute — versão da Lava-Jato no Rio — e desdobramentos estão tendo o mesmo destino:

— Todos que expõem a advocacia estão sendo suspensos, como prevê um dos incisos no Estatuto da Ordem. Não foi só o Cesar Romero. Também foram afastados pelo Tribunal de Ética os advogados Adriana Ancelmo e Tiago Aragão (sócio da mulher do ex-governador Sérgio Cabral), Flávio Godinho (ex-sócio de Eike Batista), Ricardo Magro e Márcio André (ambos envolvidos em desvios nos fundos de pensão de estatais).

O presidente da OAB-RJ ressalta que Cesar Romero reconheceu, na condição de assessor de Sérgio Côrtes, ter ajudado o então secretário de Saúde a desviar dinheiro. Para Felipe Santa Cruz, o caso de Jonas Lopes Neto é ainda mais grave porque o filho do ex-presidente do TCERJ admitiu que participou de um esquema de tráfico de influência envolvendo a Federação das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado (Fetranspor), na condição de advogado.

— Os casos estão abrindo aqui uma discussão que já esta bem avançada nos Estados Unidos: qual o limite do sigilo profissional para um advogado? O dever do profissional é com o cliente ou com a sociedade? — indagou Santa Cruz.

No caso das empreiteiras, a ação de improbidade sobre a Linha 4 é considerada uma das mais importantes e sólidas movidas pelo Ministério Público estadual. Se comprovadas as acusações, os envolvidos, entre os quais o ex-governador Sérgio Cabral, poderão perder os bens obtidos ilicitamente, a função pública, além de suspensão dos direitos políticos e ressarcimento dos danos materiais. Uma das provas apresentadas é um trecho da delação premiada de Benedicto Júnior, expresidente da Odebrecht Infraestrutura, no qual ele reconhece o pagamento de propina ao governo Cabral para entrar no consórcio responsável pela obra.

Ao incluir a Odebrecht e a Andrade Gutierrez, porém, os promotores estaduais não agradaram os colegas do Ministério Público Federal, responsáveis pelos acordos de delação premiada da Operação Calicute. Um deles, que prefere não se identificar, disse que, além de desestimular outras eventuais delações, a ação permitirá aos acusados produzir, no âmbito da Justiça Estadual — a ação de improbidade é um processo de natureza cível — uma infinidade de laudos periciais para questionar as provas amealhadas pela investigação, já que o rito é lento.

ODEBRECHT: ATRASO EXCESSIVO

A Odebrecht, em sua defesa, alegará que está protegida por um acordo de leniência. Em nota ao GLOBO, a empresa argumenta que confessou os crimes cometidos, pediu desculpas públicas e pagará pesado por isso. A Odebrecht reconhece, no entanto, que existe, “no momento, uma indefinição de outras instituições, como TCU, CGU e AGU, sobre a legitimidade de um acordo de leniência assinado pela empresa com o Ministério Público Federal e já homologado pela Justiça dos Estados Unidos”.

Ainda na nota, a Odebrecht sustenta que, por conta desse acordo, já está habilitada a participar de qualquer licitação do governo americano ou de qualquer negócio dentro dos EUA: “No Brasil, a disputa de protagonismo e mesmo a imprecisão ou contradição de leis atrasam a volta das empresas lenientes às suas atividades normais e à geração de emprego e renda. Desse modo, a empresa espera que o MPRJ reconheça e confirme o acordo de leniência da Odebrecht”.

A promotora Liana Sant’Ana, uma das responsáveis pela ação de improbidade contra a Odebrecht, defendeu a legitimidade da iniciativa. Ela lembrou que o sistema federativo estabelece fatias de atribuições e competências distintas para o MP e a Justiça nas esferas federal e estadual:

— Não há vinculação entre as instâncias, que são independentes, mas mera divisão de funções, cabendo a cada instituição ou poder exercer a sua missão. Portanto, o MPRJ age no estrito cumprimento de seu dever ao ajuizar ação que busca a responsabilização por atos de improbidade e a reparação integral do dano provocado aos cofres desse mesmo estado, não havendo possibilidade legal de abrir mão de verba pública desviada. Vale mencionar que não houve, até o momento, colaboração do grupo Odebrecht com investigações conduzidas pelo MPRJ, tampouco acordos de leniência com ele firmados.

 

O globo, n. 30597, 15/05/2017. País, p. 3