Intelectual duvida
Míriam Leitão
24/06/2017
O economista André Lara Resende mantém a convicção de que a política monetária está errada, mesmo diante da queda recente do índice que, em um ano e meio, foi de dois dígitos a 3,6%. “É altamente discutível se a gente teve sucesso por essa política monetária”, disse ele. A polêmica que começou em artigos agora chegou ao livro. Ele se defende das críticas avisando que intelectual duvida.
André define a política de regra para taxas de juros e metas inflacionárias como a nova ortodoxia, que substituiu a velha teoria quantitativa da moeda, contra a qual ele escreveu no começo da sua vida profissional:
— Durante todo o século XX, a teoria quantitativa da moeda esteve errada. Nunca entendeu a inflação crônica e nunca conseguiu vencer a inflação no Brasil. A ortodoxia dominante sempre foi equivocada. Eu tenho uma longa tradição de crítica a essa política.
Agora ele se insurge contra a nova ortodoxia. Acha que pode não haver uma relação de causa e efeito entre a queda recente da inflação e a taxa de juros alta. Acredita que a redução é consequência de aprovação da PEC dos gastos e da mudança de percepção da economia. A questão, segundo ele, é por que demorou tanto a cair. Com uma recessão tão forte de mais de 3% ao ano, taxa de desemprego chegando a 14%, a dúvida é por que a inflação não caiu antes, se a taxa de juros estava até mais alta:
— Taxa de juros transfere riqueza de um lado para o outro. Não é uma coisa que possa ser tratada apenas como técnica, especialmente se tem implicações políticas tão importantes e se o arcabouço teórico por trás dela é altamente questionável.
O livro “Juros, moeda e ortodoxia. Teorias monetárias e controvérsias políticas”, da Companhia das Letras (selo Portfolio-Penguin), é uma coleção de ensaios sobre o tema. Eu o entrevistei na Globonews:
— Causa perplexidade nos analistas há muitos anos, desde o real e o fim da inflação crônica, por que as taxas de juros são tão altas no Brasil. É unanimidade que a política monetária é muito menos poderosa e eficiente para conter a inflação do que poderia ser. Se sabe que no Brasil o paciente é resistente ao remédio, que tem efeitos secundários gravíssimos como o agravamento das contas públicas, há questionamentos teóricos recentes sobre a eficácia do medicamento. O bom senso manda fazer o quê? Continuar aplicando o remédio em doses maciças ou reduzir a dose?
A ideia dele é que no Brasil é mais grave, mas a teoria monetária tem dado sinais de não funcionar mesmo em outras economias. A recente política de relaxamento monetário para conter a deflação nas grandes economias, após a crise do subprime, teria mostrado isso. Quando os juros chegaram a zero e pararam de cair, o Banco Central ficou de mãos atadas. Pela teoria tradicional, a deflação deveria ter continuado e isso não aconteceu.
A tese mais repetida pelo Banco Central é que os juros não podem cair a níveis muito baixos enquanto não houver uma percepção de que as contas públicas e a trajetória da dívida pública estão sob controle. André diz que a interdependência entre política fiscal e monetária é muito alta, mas muda a direção do olhar:
— Em um país como o Brasil, em que a dívida é 70% do PIB e o juro nominal, 10%, o serviço da dívida é algo como 7% do PIB. É uma barbaridade.
O país passou por dois eventos que parecem confirmar a política de metas de inflação. O governo Dilma reduziu os juros, sem haver condições técnicas, e a inflação subiu. Agora, aumentou a confiança no compromisso do Banco Central com a meta, e a inflação caiu. Com uma dívida tão alta e déficit primário, a queda forte dos juros poderia provocar uma fuga para outros ativos? Ele diz que a questão não é simples e que a política monetária não é para ser tratada “a ferro e fogo” como se fosse ciência. Ponderei que os chamados desenvolvimentistas poderiam dizer que sempre defenderam que para controlar a dívida pública era preciso reduzir os juros.
— Eu não gosto de rótulos. Isso é o antipensar, anti-inteligência. Existem coisas certas em uma linha de pensamento e em outra também. Uma das premissas de ser intelectual é estar sempre em dúvida, senão passa a ser religião, é fé. Nada mais inapropriado para a fé do que a teoria monetária.
O globo, n.30637 , 24/06/2017. ECONOMIA, p. 18