Dissintonia fina

Merval Pereira

01/07/2017

 

 

O combate à corrupção no país entra em uma fase crucial de discussão jurídica sobre o poder de atuação de cada uma das partes envolvidas nas investigações e condenações dos réus dos diversos processos da Lava-Jato. A regulamentação das delações premiadas como instrumento novo e decisivo nesse combate está em curso nos tribunais, e tivemos nesta semana dois exemplos disso. Tudo indica que esteja havendo a busca de uma sintonia fina entre os vários atores, mas o que há no momento é uma dissintonia.

O Supremo Tribunal Federal (STF) discutiu pela primeira vez o papel do colegiado no julgamento dos envolvidos em delações premiadas e decidiu que os acordos feitos na Procuradoria-Geral da República só podem ser alterados em caso de ilegalidades detectadas no decorrer do processo, e o Tribunal Regional Federal da 4ª Região absolveu o ex-tesoureiro do PT João Vaccari Neto, que havia sido condenado pelo juiz Sergio Moro a 15 anos de detenção por corrupção, lavagem de dinheiro e formação de quadrilha.

No caso do STF, não prevaleceu a tese inicial do relator, Edson Fachin, de vinculação da Corte ao acordo fechado pela Procuradoria-Geral, mas ficou muito restrita a possibilidade de revisão. Um fato novo é a opinião da futura procuradora-geral da República, Raquel Dodge, revelada na edição de ontem do jornal “Valor Econômico”, que concorda com o ministro Gilmar Mendes em que os acordos firmados entre os procuradores e o delator são apenas indicações que têm de ser confirmadas pelo plenário do Supremo, ou pelo juiz do caso, ao final do processo.

No caso de Vaccari, poderemos ter outros julgamentos no mesmo TRF-4 que levem a novas absolvições do extesoureiro do PT, pois está fixada uma exigência de provas além da delação premiada mais rigorosa do que previam os procuradores de Curitiba e o próprio juiz Moro.

Até agora, a maioria das decisões da Corte de segunda instância foi no sentido de ratificar ou, até mesmo, aumentar as penas dadas na primeira instância por Moro, mas os casos todos se referiam a réus que, apontados nas delações premiadas, receberam diretamente dinheiro de propina disfarçado em pagamento de supostas consultorias ou palestras ou situações assemelhadas.

João Vaccari, como um dedicado servo do PT, homem do partido, não fez delação premiada e não teve nenhum montante depositado em seu nome, tendo intermediado o pagamento de propina, segundo várias delações, mas nunca esse dinheiro parou em uma conta pessoal sua. O juiz Moro considerou que as doações eleitorais oficiais feitas por empreiteiras ao PT, por meio de Vaccari, saíram do esquema de corrupção na Petrobras e usou como prova o fato de que as doações coincidiam com os desembolsos da estatal para as empreiteiras.

Moro disse, na sentença, que as acusações também “encontram corroboração na prova material das doações, nas circunstâncias objetivas de sua realização, e ainda na prova material da entrega de valores por outra empreiteira e em circunstâncias sub-reptícias”.

O relator no TRF-4, desembargador João Pedro Gebran, não apenas concordou, mas votou pelo aumento da pena de Vaccari. Os outros dois desembargadores da Turma, Leandro Paulsen e Victor Laus, inocentaram João Vaccari Neto, considerando que não houve provas além das delações premiadas, que não servem, por si só, segundo a legislação, como elemento de prova.

Tudo indica, no entanto, que este foi um caso pontual em que uma divergência na avaliação da prova e da interpretação da lei pesou na revisão da pena. Nada que deva ser superdimensionado, segundo a interpretação que prevalece em Curitiba. A situação de Vaccari não é extensível a outros casos, pois é uma questão de prova que varia caso a caso.

A questão é que Vaccari roubava para o partido, então tem a prova do dinheiro indo ao partido, mas não de enriquecimento pessoal, pois não era isso o que ele fazia. Só nesse caso havia cinco depoimentos confirmando a corrupção e o envolvimento do Vaccari. E, para muitos juristas, a corroboração de delações cruzadas, isto é, o mesmo relato de diversas fontes, apoiados em indícios fortes, pode substituir as provas, mas não foi esse o entendimento da maioria da 8ª Turma do TRF-4.

A denúncia contra Lula no caso do tríplex do Guarujá, por exemplo, é feita na base de indícios e delações segundo a defesa, e por isso há a esperança de que a mesma decisão seja tomada pelos desembargadores do TRF-4, caso o ex-presidente venha a ser condenado em primeira instância. Contudo o MP de Curitiba que atua na Lava-Jato sempre esteve muito confiante pelo prisma jurídico nesse caso, pois considera que o quadro de provas é consistente, independentemente de qualquer colaboração.

De fato, no caso específico há fotos, documentos, a compra de cozinhas especiais para o tríplex e o sítio de Atibaia, além da delação do próprio dono da OAS confessando que deu o apartamento para o ex-presidente como pagamento por favores prestados, descontando o valor de uma conta-corrente da propina.

 

O globo, n.30644 , 01/07/2017. PAÍS, p. 4