Delator da J&F ressuscita ligação Temer-porto

Fernanda Pires

03/06/2017

 

 

A delação do ex-executivo da J&F Ricardo Saud colocou novamente em questão a ligação do presidente Michel Temer com o porto de Santos (SP), área de influência do pemedebista quando era deputado federal na década de 1990, um dos períodos em que foram firmados contratos com suspeitas de irregularidades.

No depoimento do dia 10 de maio, Saud afirma que o ex-deputado federal Rodrigo Rocha Loures (PMDB-PR) sugeriu o nome de Ricardo Mesquita, diretor de relações institucionais do grupo portuário Rodrimar, para receber propina que seria destinada a Temer. Saud rechaçou a sugestão, segundo relatou aos investigadores.

A assessoria do presidente Temer disse ser "absolutamente inverídica" a versão de que propinas seriam destinadas a ele. O advogado de Rocha Loures, Cezar Bitencourt, afirmou desconhecer a informação do vídeo.

"Você vai entregar para o Ricardo", teria dito Loures a Saud. O procurador intervém: "Da Rodrimar", ao que Saud confirma, e reproduz a resposta dada a Loures: "Não, já tivemos problema com o Celso, já te falei. Eu não vou entregar para o Ricardo. Ou esse dinheiro entrego para você ou então entrega para o Temer, não vou entregar para a Rodrimar, não".

Antônio Celso Grecco, identificado por Saud na delação como muito amigo de Temer, é o presidente da Rodrimar. A empresa foi alvo de busca e apreensão no âmbito da Operação Patmos.

O grupo de Santos nasceu nos anos 1940 com atuação em despacho aduaneiro. Hoje é arrendatário de dois terminais de cargas no cais santista e sócio de um terceiro - todos os contratos já questionados pelo Tribunal de Contas da União (TCU) por motivos diferentes que teriam beneficiado a empresa: falta de licitação, mudança de objeto do contrato, e anexação de área com alteração de prazo.

Os contratos, com datas de 1991, 1993 e 1999, estão vencidos e operam sob liminar, mas a Rodrimar tenta construir caminhos para se manter nas áreas por mais tempo. Um deles era incluir no recém-publicado Decreto dos Portos, que flexibilizou regras paras as empresas, a possibilidade de os contratos firmados antes de 1993 serem prorrogados até o limite de 70 anos. Pelo decreto, só os contratos assinados sob a Lei dos Portos de 1993 - a primeira do setor e que fixou a licitação como crivo para o privado explorar área no porto público - podem ser enquadrados na regra.

A Rodrimar visava garantir que seu contrato de 1991 - por meio do qual explora sua maior área, no cais do Saboó - ganhasse mais prazo. Loures era o interlocutor dessa demanda que chegou a constar de versões do Decreto, mas a área técnica e o jurídico da Casa Civil vetaram a tentativa, já que os contratos firmados antes de 1993 não foram licitados.

Em 2002, uma auditoria do TCU apontou uma série de irregularidades em arrendamentos feitos pela Companhia Docas do Estado de São Paulo (Codesp), estatal que administra o porto de Santos. A Pérola, empresa da qual a Rodrimar é sócia, herdou em 1999 dois contratos da década de 1980 que estavam extintos. Em vez de fazer licitação, a Codesp aglutinou e adequou os contratos e deu prazo para a Pérola explorar a área por 15 anos, renováveis por igual período.

O TCU determinou que a Codesp anulasse o contrato e licitasse as áreas. Após pedido de reexame, acórdão proposto pelo ministro-relator Raimundo Carreiro afrouxou a determinação e suspendeu a anulação, mandando que se realizasse a licitação em 2014, sem chance de prorrogação.

Na mesma auditoria, o TCU considerou ilegal a modificação do objeto de outro contrato da Rodrimar, este assinado em 1993 - o único da empresa que foi licitado -, localizado no cais de Outeirinhos. Por meio de um aditivo, a Codesp modificou o objeto do contrato e substituiu áreas, aumentando em quase 50% o terminal. Para o TCU, isso exigiria nova licitação. Na revisão, a corte concluiu que houve benefícios para o porto e relevou "excepcionalmente a irregularidade".

Em 2014 a Rodrimar tentou uma saída para salvar o arrendamento de Outeirinhos. Tentou insistentemente que o então governo Dilma Rousseff acatasse um pleito de unificação com o contrato que hoje é operado pela Eldorado Brasil, da J&F, e expira em 2029. Com isso, pretendia anexar seus armazéns à área, o que redundaria em um grande terminal que passaria a vigorar com o prazo da área explorada pela empresa dos irmãos Batista.

Fontes que estavam no governo na época afirmam que o projeto era bom, mas que de forma nenhuma a transação poderia ser feita - a Rodrimar e a Codesp já tinham sido alvo do TCU em 2011 devido à anexação de uma área da empresa Citrovita ao contrato do Saboó, unificação que adiou o fim da exploração de 2011 para 2013. Além disso, a área constava do programa federal de licitações, o PIL.

O contrato da Pérola e o aditivo do terminal de Outeirinhos que beneficiaram a Rodrimar foram feitos, respectivamente, sob as gestões dos ex-presidentes da Codesp Paulo Fernandes do Carmo e Marcelo de Azeredo - ambos, conforme fontes, apadrinhados por Temer para o comando do porto nos anos 90. A assessoria de Temer nega as indicações e diz que Azeredo fora indicado pela bancada estadual do PMDB de São Paulo à época. Temer era deputado federal.

Em uma ação de reconhecimento e dissolução de união estável movida por Érika Santos contra Azeredo em 1999, Temer foi citado como um dos destinatários das "caixinhas ou propinas" negociadas com os vencedores das licitações ou com os concessionários do porto. O dinheiro seria repartido entre Temer, Azeredo e "um tal de Lima", diz a ação.

A Rodrimar aparece como tendo pago R$ 150 mil e feito uma doação para uma das campanhas de Michel Temer nos anos de 1990 no valor de R$ 200 mil. Em 2001 o então procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro, mandou arquivar as denúncias que envolviam Temer. Dez anos depois, quando Temer era vice-presidente, uma nova tentativa de investigação foi arquivada pelo ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, por falta de indícios contra Temer, entendendo que não se poderia depreender "Michel Temer" das iniciais "MT" que constavam das planilhas com o destino do dinheiro.

A Rodrimar informou que acompanhou as discussões sobre a edição do Decreto dos Portos via associações de classe. "O Decreto foi um avanço no sentido da regulamentação, que vem sendo reivindicada desde 1993, mas não atendeu aos pleitos do setor", diz a nota. Sobre os contratos, destacou que foram auditados e validados pelo TCU. Ainda em nota, afirmou que "nenhum dos executivos ou sócios da Rodrimar possui qualquer relação pessoal com o presidente Michel Temer, nunca pagou propina, nunca fez qualquer doação de campanha a ele, e desconhece os motivos que levam qualquer pessoa a dizer o contrário."

 

 

Valor econômico, v. 17, n. 4269, 03/06/2017. Política, p. A7.